segunda-feira, 16 de junho de 2008

DIVERSIDADE RACIAL NAS ORGANIZAÇÕES: A PERCEPÇÃO DO OUTRO NO PROCESSO SELETIVO

Renato Ladeia Oliveira *

RESUMO
Este artigo pretende contribuir para a discussão da questão racial no Brasil a partir dos processos seletivos para ingresso nas empresas e os mecanismos discriminatórios utilizados. A existência de problemas raciais no Brasil é comprovada através de estudos clássicos, mas não há trabalhos específicos com relação às organizações empresariais. Esse estudo está baseado na história de vida de profissionais de recursos humanos que atuam ou atuaram diretamente nessa atividade. A narrativa desses interlocutores é bastante rica em informações, o que pode indicar caminhos para que as empresas possam coibir essas práticas.

Palavras-chave: gestão de pessoas, ações afirmativas, raça e discriminação.

ABSTRACT
This article intends to contribute for the discussion of the racial subject in Brazil starting from the selective processes for entrance in the companies and the used discriminatory mechanisms. The existence of racial problems in Brazil is proven through classic studies, but there are no specific works regarding the business organizations. That study is based on the history of professional’s of human resources life that they act or they acted directly in that activity. Those speaker’s narrative is quite rich in information, what can indicate ways so that the companies can restraint those practices.

Key words: human resources, affirmative actions, race and discrimination.

* Mestre em Administração de Empresas e doutorando em Ciências Sociais pela PUCSP. É professor do Depto. de Administração da Unifei SBC

Introdução

A temática desse artigo está direcionada para processo seletivo de pessoas nas empresas, atividade inerente ao setor de Recursos Humanos e que trata do recrutamento, triagem e avaliação de candidatos para os seus quadros funcionais. Os profissionais que atuam nesta área têm, a rigor, um poder limitado na aprovação dos candidatos às oportunidades de emprego oferecidas pelas empresas, pois seu papel é limitado na aprovação de candidatos às oportunidades de emprego oferecidas pelas empresas, pois se restringe, em geral, a indicação do melhor ou dos melhores profissionais para o preenchimento das vagas disponíveis. Essa atividade está dividida em duas etapas principais: Recrutamento, como uma série de atividades que trata dos estudos e contatos com o mercado de trabalho, assim como da primeira convocação de candidatos (Toledo, 1992). A seleção propriamente dita, já se refere a um processo, normalmente, mais complexo, onde são envolvidas tecnologias psicológicas como baterias de testes, entrevistas, dinâmicas de grupo, dramatização etc. Toledo (1992:67), explica que “é preciso ter sempre em mente que a boa seleção visa unir um indivíduo a uma função, e que, assim sendo, é preciso conhecer profundamente não só o indivíduo como também a função, sem o que não teremos o verdadeiro ajustamento”. Os testes psicológicos "foram criados, e utilizados para determinar e analisar diferenças individuais com relação a inteligência, aptidões específicas, conhecimentos escolares, adaptabilidade vocacional e dimensões não intelectuais da personalidade" (Formiga & Mello, 2000, p. 13).
Em geral, a decisão final cabe sempre a um gerente ou chefe que receberá o novo funcionário. O selecionador pode, naturalmente, desqualificar uma pessoa negra ou de outra etnia que a seu critério, considera inadequada para o cargo. Caso o requisitante seja preconceituoso com relação à outras etnias, o selecionador tende a assumir o papel de fantoche, descartando os “indesejáveis”, apresentando as desculpas de praxe para não assumir nenhum tipo de responsabilidade, bem como não comprometer os seus pares ou superiores hierárquicos. A expressão “conhecer profundamente a função” envolve, não são somente os aspectos funcionais, técnicos, mas também com quem o funcionário vai trabalhar. Ao unir o indivíduo à uma função, o selecionador deverá ter em mente que está realizando um trabalho eficiente, adequando o indivíduo às característica do chefe e da equipe. Assim, esse profissional é um técno-burocrata, que precisa ser preciso, rápido, discreto e eficiente (Weber, 1974). Portanto, o desafio principal do recrutamento é agregar valor à organização e às pessoas (Chiavenato, 1999). Dessa forma, um funcionário não adequado à empresa (ou ao chefe), não estaria agregando valor. Caso o selecionador seja preconceituoso, ele pode assumir por sua própria conta, a responsabilidade na discriminação de pessoas que considera com “perfil” inadequado, mas sempre utilizando discursos de conteúdo evasivo, como por exemplo: não atende ao perfil solicitado. Essa lógica está implícita no pressuposto de que ele deve agregar valor à organização ao contratar um funcionário. Numa perspectiva de hierarquização das “raças”, é evidente que suas ações serão preventivas, eliminando candidatos que considera inadequados aos objetivos organizacionais, mesmo que os eventuais chefes que estão recrutando os profissionais não discriminem pessoas em função da origem étnica.

Chiavenato, um conhecido e difundido autor de manuais sobre Recursos Humanos e habitualmente adotado em escolas de Administração de Empresas, relata as razões pelas quais algumas pessoas são preteridas ou não para vagas nas empresas:

Acontece que a variabilidade humana é enorme: as diferenças individuais entre as pessoas, tanto no plano físico (como estatura, peso, compleição física, força, acuidade visual e auditiva, resistência à fadiga etc), como no plano psicológico (como temperamento, caráter, inteligência, aptidões, habilidades mentais etc.) levam as pessoas a se comportar diferentemente, a perceber situações de maneira diferente e a se desempenhar diferentemente, com maior ou menor sucesso, nas organizações (1999:107)

As chamadas diferenças individuais mencionadas pelo autor não mencionam a cor, diferentemente do que ocorria até meados dos anos 40 nos anúncios de emprego publicados no país de acordo com Damasceno (2000), quando essa característica fenotípica era explicitada. Entretanto o processo seletivo dispõe de um enorme arsenal de elementos que podem dificultar o acesso de pessoas às organizações sem a necessidade de exposição de comportamentos discriminadores. Num outro momento, o autor afirma que “a seleção passa a ser configurada basicamente como um processo de comparação e de decisão” (Chiavenato, 1999:107). Portanto, a objetividade dos processos seletivos pode ficar na dependência, única e exclusiva, dos profissionais que estão a frente dessas funções nas organizações, pois elas podem dispor de inúmeros mecanismos subjetivos fundado numa ideologia racionalista para formular a recusa de um profissional por preconceitos ou discriminação.

ALGUMAS QUESTÕES TEÓRICAS

A utilização do conceito de raça é relativamente recente na cultura ocidental, pois seu significado original estava mais ligado a um grupo de pessoas interligadas por uma origem comum, conforme afirma Banton (1994:264) e não para se referir a populações com características fenotípicas diferenciadas. De qualquer forma, já é patente no âmbito das ciências sociais, notadamente na antropologia, que biologicamente o conceito de raça não existe no sentido em que é utilizado, sendo o termo irrelevante para a ciência. Admite-se, no entanto, que a expressão tem um interesse maior no campo sociológico do que na biologia ou na antropologia física, sendo por isso considerado como uma construção social, engendrada a partir das relações sociais numa realidade concreta. (Berger e Luckmann, 1983). Neste sentido, raça pode ser também entendida como uma ideologia construída a partir de elementos da realidade, cujo objetivo é mascarar esta mesma realidade em função de interesses sociais, políticos e econômicos.
Para Levi-Strauss (1960), o pecado original da antropologia foi a confusão entre a noção puramente biológica de raça e as produções sociológicas e psicológicas das culturas humanas. Aliás, esta noção, mesmo pretendendo uma objetividade científica, foi amplamente contestada pela genética.
Por sua vez a teoria da evolução de Charles Darwin, através da Origem das Espécies (1996), serviu como fundamento ideológico para a formulação de teorias sobre raças. Não que tenha sido esta a intenção, mas sua obra foi utilizada para dar a base “científica” sobre a hierarquização dos diversos grupos humanos. As leis da seleção natural, da sobrevivência dos mais aptos, foram saudadas pelos europeus como um forte argumento para justificar a exploração dos povos considerados inferiores como os negros africanos e os indígenas. A teoria biológica de Darwin, após um processo de rude simplificação e distorção de acordo com os interesses políticos e econômicos, foi transformada no Darwinismo social.
Para Levi-Strauss (1978), a mente humana apesar das diferenças culturais entre as diversas frações da humanidade, é em toda a parte uma e a mesma coisa, com as mesmas capacidades. O que efetivamente diferencia os homens em suas várias etnias, grupos, tribos é o uso que se faz da mente para atender as suas necessidades cotidianas. Temos assim algumas habilidades desenvolvidas que atendem as demandas da vida moderna numa sociedade industrial e extremamente complexa. Por outro lado, numa sociedade tribal, são desenvolvidas algumas habilidades para as quais nos julgamos totalmente incapazes.
Enfim, a questão da diversidade humana é extremamente complexa, envolvendo aspectos biológicos e, principalmente, sociológicos, antropológicos e psicológicos, tornando-se por isso, impossível o consenso a respeito do tema. A questão relevante, no entanto, é que a dificuldade de aceitar o outro, desemboca fatalmente no ódio, na intolerância e “trata-se, em primeiro lugar, da aparente incapacidade de se constituir como si mesmo, sem excluir o outro; em seguida, da aparente incapacidade de excluir o outro sem desvalorizá-lo, chegando, finalmente, a odiá-lo”. Neste enfoque, o racismo pode ser visto como uma incapacidade humana em aceitar o diferente (Castoriades, 1992:32).

A HISTÓRIA DE VIDA COMO MÉTODO

A definição de história de vida de Dollard, apud Nogueira (1977), é relevante, indicando-a como uma tentativa deliberada para definir o desenvolvimento de uma pessoa num meio cultural e lhe dar um sentido teórico, compreendendo os documentos autobiográficos com os biográficos.
A opção pelo método da história de vida de profissionais que atuam ou atuaram por longo tempo na área de Recursos Humanos, em organizações nacionais e internacionais, tem, evidentemente, razões de natureza antropológica e sociológica, pois se busca não um conjunto de dados quantitativos para serem analisados e comparados, mas a riqueza da informação obtida através dos relatos de vivência de indivíduos, compartilhados ou não, por outros. “Pelo recurso à memória é possível também captar os sentimentos experimentados, pois a lembrança do acontecimento vivido faz com que aflorem o ódio, o amor, a alegria, a tristeza, o conformismo, a revolta” (Bernardo, 1998)
A narrativa parte da experiência concreta, vivida e também daquela contada pelos outros. Essa forma artesanal da comunicação humana não tem a intenção de transmitir um conteúdo puro como a notícia. Pelo contrário, diz Benjamin (1975), “imerge essa substância na vida do narrador para, em seguida, retirá-la dele próprio” A narrativa revelará sempre a marca do narrador, da mesma forma como é revelada a mão do artista na cerâmica.
Durante a vida profissional as pessoas vão acumulando memórias sobre fatos, conflitos, sucessos e fracassos. Essas memórias, de natureza individual ou coletiva preserva vivências pessoais ou aquelas vividas pelo grupo a que a pessoa julga pertencer (Pollack: 1999). Alguns profissionais que atuam e atuaram na área de recursos humanos em algumas empresas paulistas, foram convidados para prestar depoimentos sobre os casos de discriminação racial nas empresas em que trabalharam ou ainda trabalham. A primeira reação manifestada pela maioria deles é que não se lembravam de situações de discriminação racial nas empresas. Entretanto, na medida em que começaram desfiar a teia da memória, foram se recordando de fatos e situações que nunca chamaram à atenção, mas que perceberam, na medida em que foram narrando histórias de vida profissional, que testemunharam casos de discriminação. Os nomes das organizações e das pessoas foram omitidos por solicitação dos depoentes, considerando a delicadeza do tema.
Entre os depoentes, alguns atuaram na área chegando ao topo da hierarquia como Gerentes ou superintendentes. Os demais atuam ou atuaram na coordenação de processos seletivos, recrutando e selecionando candidatos, entrevistando, desenvolvendo dinâmicas de grupo e indicando os mais adequados, de acordo com a percepção de cada um, para as vagas disponíveis nas respectivas organizações.
Dessa forma, a partir da história de vida desses profissionais foi possível identificar situações de discriminação racial nas organizações em que desenvolveram suas atividades profissionais. As lembranças, às vezes, são vagas, mas sempre há um caso para ser resgatado, no fundo do baú da memória humana. Há casos em que nunca foram pensados como tal, mas vieram à tona no momento em que fizeram os depoimentos. Todos eles, de uma forma mais explícita ou apenas por suposição, se lembraram de situações que evidenciam situações de discriminação em relação ao negro ou a outras etnias.
Para Halbwachs (1968), a experiência para ser real precisa ser vivida, construída na memória do indivíduo e quando essas lembranças são confrontadas por outros, aumenta a crença de que se está reconstruindo a própria experiência. Assim, a memória precisa ser colocada em um contexto grupal, do qual o indivíduo faz parte, supondo acontecimentos comuns, reais, vividos em comum. Daí a validade dessa experiência, pois ela foi compartilhada por outros e de certa forma também vivida pelo narrador ao sentir na pele aquilo que somente é contado por aqueles que foram vítimas.
Há uma enorme fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, que separa uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado que as representam desejam passar e impor. A história oral, tem aí um papel relevante no resgate dos que vivem a margem da história oficial.

Discriminação racial nos processos seletivos

O processo de seleção dos empregados para as organizações tem uma importância primordial na investigação do racismo nas organizações, pois é o primeiro contato com a empresa, podendo resultar numa experiência positiva ou negativa, na contratação ou não. Mesmo as empresas mais abertas à diversidade, podem ter em seus quadros funcionários que agem de forma preconceituosa com relação ao outro, pois eles quase nunca se revelam ou assumem suas posições com relação ao diferente. Como já foi dito, os critérios de racionalidade administrativa não são tão abrangentes que possam inibir elementos de subjetividade no momento de avaliar um candidato. Se o selecionador já conhece o estilo do gerente para o qual será encaminhado o candidato, provavelmente ele deverá barrar aquele que não esteja ajustado ao perfil solicitado, mesmo que tenha competências relevantes.

Os depoimentos seguintes mostram o nível de subjetividade que permeia todo o processo em que as pessoas são selecionadas para serem contratadas pelas organizações privadas. Éno caso das organizações públicas os critérios de impessoalidade são muito mais efetivos, pois depende do desempenho dos candidatos nas provas escritas, e essas garantem para aqueles que obtiveram as melhores notas, o direito assegurado pela constituição de ingressar no serviço público ou numa empresa pública.

L.H.L., 39 anos, branca, psicóloga e Consultora de Recursos Humanos admite a existência de subjetividade ao afirmar que o preconceito depende das pessoas que estão entrevistando os candidatos e não da empresa em si, conforme relata:

Acho que depende muito de quem entrevista, de quem recebe as pessoas. Se a pessoa é preconceituosa, ela vai agir ali e nunca ninguém vai ficar sabendo. Eu acho muito difícil ocorrer, primeiro porque nenhuma organização vai ter essa política de não contratação de negros ou outras raças. Eu nunca vi isso dos requisitantes.

No início do seu depoimento L.H.L.. deixou bem claro que não percebeu, em nenhuma situação de sua vida profissional, um só caso de preconceito ou discriminação contra pessoas negras desde 1985, quando começou a trabalhar como Psicóloga em seleção de pessoal. Seu discurso procura passar uma racionalidade profissional, onde os melhores, os mais aptos eram aprovados com base nos perfis estabelecidos pelas organizações (Weber: 1974). Para ela, apenas um fato se tornou marcante em sua trajetória: quando foi acusada de racismo por uma candidata que se sentiu discriminada por ser negra. Luzia conseguiu provar que agiu profissionalmente, mas afirma que ficou com dúvida se a moça agiu por má-fé ou por se sentir mesmo discriminada.
“Ela não havia sido reprovada pela cor, mas por não ter as características da requisição, por exemplo: tom de voz, comunicação verbal que eram coisas importantes no atendimento ao público. O banco usou isso como justificativa. Eu não sei se ela entrou com isso maldosamente ou se ela mesma achava... Quer dizer: o racismo começa também com os negros. Tem esse lado também. Tanto é que lá no banco tem vários negros”. (L.H.L.)

Esta construção indica uma inversão de papéis, em que o negro teria um sentimento de superioridade em relação aos demais. Essa idéia tem o sentido absurdo de que oprimido é superior ao opressor. A construção do racismo está fundamentada na percepção de que uma população humana é superior às demais. Portanto, não faz sentido aquele que é percebido como inferior ter atitudes racistas. O sentimento de revolta contra a exclusão pode estar sendo usado como justificativa para os mecanismos de discriminação do outro.

Na fala seguinte L.H.L. relativiza a questão com base na sua experiência, defendendo que algumas empresas nacionais praticam mais discriminação, citando o banco em que trabalha.

“As multinacionais não são tão preconceituosas assim, dependendo do país onde elas se entram. Mas algumas empresas nacionais acabam tendo maior discriminação. Por exemplo, o banco em que trabalho. Um banco extremamente formal, que discrimina a idade, a aparência, mas nunca problemas de cor. Nunca um requisitante falou, assim, abertamente: não quero negro, não quero japonês, nunca aconteceu isso”. (L.H.L.)

O exemplo do banco, que adota políticas discriminatórias em relação à idade e a aparência, pode ser um caso de camuflagem do preconceito. Não é difícil entender o significado de boa aparência, quando não são vistos gerentes ou atendentes negros. A boa aparência pode ser uma senha para o preconceito numa sociedade que há séculos pratica a discriminação. A metáfora da boa aparência, historicamente, passou a ser utilizada no final dos anos 40 (Damasceno, 2000), pois até então os anúncios de jornais destacavam a cor desejada nas contratações. Para as funções que havia invisibilidade a cor não era mencionada ou chega-se até a destacar a preferência por negros ou pardos. Entretanto, quando o empregado tinha uma função visível ou relacionamento direto com os superiores ou a família do contratante, a cor branca era preferida. A exigência da fotografia é outra forma, até hoje ainda utilizada por alguns anunciantes, pois evita o contato com candidatos considerados “diferentes” para as vagas. Assim, a combinação “da cor com a boa aparência vai aos poucos sendo substituída pela segunda não teriam vez, pois na visão racializada, as pessoas que mantêm contato direto com o público precisam ser claras e bonitas.

L.H.L. narra que a questão é mais complexa e está ligada a questão social no negro no Brasil. Ela entende que o problema se vincula à desigualdade de oportunidades e enfatiza ainda, que não é apenas a formação escolar, é a formação familiar, é o conhecimento geral.

Em seguida, transfere a culpa da desigualdade e do sentimento de inferioridade dos negros. Esse sentimento é patente, mas ela não percebe que está relacionado ao racismo, que leva os negros brasileiros a terem baixa auto-estima, colocando-os numa situação de inferioridade nas dinâmicas de grupo dos processos seletivos, em que se confrontam com brancos, quando necessitam se posicionar, discutir e questionar. Essa questão é discutida por Hasenbalg (1979) que, ao contrário de outros estudos, questiona se de fato o tempo relativamente recente do fim do regime escravo seja um fator determinante na desigualdade atual. Ele tem razões para afirmar que não, pois a desigualdade é fruto da discriminação, não somente após a abolição, mas também anteriormente a ela, pois havia cerca de 74% dos não-brancos no Brasil em liberdade e apenas 10% da população negra estava ainda em regime escravo na assinatura da lei Áurea em 1988.

Como já foi mencionado, as organizações, através dos seus dirigentes, jamais assumiriam uma política de discriminação, mas as pessoas que estão dentro delas, podem agir de forma a discriminar pessoas por etnia, sexo, religião, cultura etc. Como os critérios de avaliação contém uma dose significativa de subjetividade, é impossível ter um controle efetivo sobre a prática. A boa apresentação a depoente afirma “nunca foi muito explícita” e talvez por isso ela perceba poucos negros trabalhando nas empresas, principalmente em cargos administrativos e de nível mais alto.

L.H.L. acredita que a legislação mais severa contra o racismo faz com que as pessoas sejam mais sutis, pois ninguém assume o seu racismo de forma explícita. Ela sugere que deve ter acontecido alguma vez de ter encaminhado vários candidatos e não serem aprovados por serem negros; mas realmente nunca sentiu que foi por causa da cor.

A coisa é meio implícita, como uma boa apresentação, nunca foi muito clara. O que eu percebo, é que existem realmente poucos negros trabalhando nas empresas. E depende também da área. Se é numa indústria nota-se bastante negros, mas na fábrica.. Para cargos de assistentes também existem alguns negros, mas quando vai subindo o nível já vai diminuindo a contratação de negros. (L.H.L.)

Ela também relatou que recentemente contratou um gerente negro indicado por um diretor. Como o diretor já havia trabalhado com o profissional negro, ele fez questão de contrata-lo. Havia outro candidato em iguais condições que também foi encaminhado, mas não foi aprovado. A questão que se coloca é que se ela teria efetivamente encaminhado o candidato para entrevista se não houvesse a indicação do diretor? A resposta é, possivelmente não, pois a prática é encaminhar o candidato com o perfil mais adequado à organização e um negro, na visão da depoente, poderia não ter essa condição, pois é um diferente, destoante do padrão socialmente construído de um executivo de um grande banco. Percebe-se isso quando ela afirma: “Entrevistei um candidato branco que tinha uma formação melhor do que o negro e com experiência que vinha ao encontro das necessidades da área”.

M.I.G. 40 anos, economista e gerente de recursos humanos em um banco multinacional iniciou seu depoimento sendo taxativa quanto ao fato de nunca ter presenciado um caso discriminação nas empresas nas quais trabalhou. Mas acabou lembrando de uma história em que o próprio candidato cobrou uma definição da empresa quanto a sua posição frente à diversidade racial. Ele colocou a seguinte questão: “O banco é racista? Se for nem darei continuidade ao processo”. Essa situação colocou em cheque os valores da profissional levando-a a questionar a si mesma, outras pessoas da empresa e mesmo a própria organização, pois não se sentia em condições de continuar o processo de seleção sem uma definição sobre como o candidato negro seria considerado, mesmo tendo um excelente currículo.

Esse caso também reflete a ausência evidente de políticas afirmativas dentro da organização com relação à discriminação. Ao desconhecer as políticas do Banco com relação ao tema, a depoente expôs as contradições existentes nas organizações ao lidarem com profissionais conscientes de sua condição e da existência de discriminação. Ao questioná-la, o candidato quis saber se valeria a pena concorrer numa situação em que as cartas estariam previamente definidas. Provavelmente, sua experiência de vida competindo com brancos num mercado bastante restrito, já lhe havia proporcionado uma visão de sua situação. A resposta da bancária foi, obviamente, que não havia este tipo de problema no Banco para evitar maiores complicações, mas intimamente tinha dúvidas, o que a levou a questionar a empresa e outros colegas de trabalho. O espírito de corpo, conforme afirma Merton (1999), que está presente no comportamento burocrático levou a profissional a preservar seus superiores, pares, enfim a organização. A presença de negros em condições de concorrer a posições de nível mais alto dentro das hierarquias das empresas é tão incomum no Brasil, que pode gerar situações surpreendentes como a descrita.

E.J.S, 50 anos, branco, Bacharel em Ciências Sociais, trabalhou toda sua vida numa empresa alemã, atuando como Supervisor do Departamento de Seleção e Treinamento. Ele relata várias situações vividas na empresa sobre as relações raciais. No seu caso, também, não aparecia de forma explícita a existência de racismo por parte da direção da empresa, constituída, em sua maioria, por alemães. Ele lembra que nos anos 70 um gerente recusava com freqüência a maioria dos candidatos encaminhados. Questionado ele respondeu: “Se o sujeito nasceu do Rio de Janeiro para cima, não manda o candidato para mim”. Segundo o depoente, esse gerente tinha um imenso preconceito contra a mistura de raças, recusando além de candidatos negros, também os mestiços.
A história do depoente comprova que a decisão pelas contratações não era dele e de nada resolveria ignorar o gerente e continuar enviando candidatos negros, mestiços ou mesmo nordestinos que todos seriam reprovados. Ao cobrar uma definição do gerente, este assumiu o racismo de forma explícita. Como ele comandava uma área de grande importância para a empresa e gozava de muito prestígio e poder, a solução foi atendê-lo para evitar maiores problemas. A posição do narrador, evidentemente, foi tentar ser neutro, evitando dificuldades que pudessem ameaçar o seu emprego ou mesmo o bom desempenho de seu setor. Isso evidencia que “Ao longo da história, as organizações têm sido associadas a processos de dominação social nos quais os indivíduos ou grupos encontram formas de impor a respectiva vontade sobre os outros” (Morgan, 1996:281). Na época do relato (anos 70), o país estava atravessando um significativo crescimento econômico e como o departamento desse gerente era estratégico para a organização, não podia faltar mão-de-obra de acordo com o perfil solicitado. O contrário implicaria em transferir para a área de Recursos Humanos, a responsabilidade pelo não cumprimento das metas do departamento e por conseqüência da empresa.
Outro aspecto interessante do depoimento de E.J.S. está relacionado também ao preconceito em relação aos nordestinos, quando ele diz: “Do Rio de Janeiro para cima não enviar candidato”, “a discriminação em relação aos nordestinos, verificada em São Paulo, manifesta-se através de vários meios, contudo, o que mais sobressai é a linguagem” (Estrela, 2003: 180). Na realidade ocorre um processo de racialização das relações, pois nem todos os nordestinos são negros ou mulatos. Nesse processo, converte-se o sentimento de racismo para outros grupos ou etnias, independentemente se são brancos ou não. Estrela (2003:81), afirma que a identidade social é um produto das representações, mantendo um estreito vínculo entre, por um lado, as condições para a construção das identidades e os elementos articulados nestas representações e, por outro lado, as condições de existência, a cultura e as relações sociais. Dessa forma, são atribuídas características estereotipadas para todos os nordestinos, criando-se para eles um tipo de identidade associada à pobreza, a ignorância, ao machismo, a violência etc. (Estrela, 2003).
Num outro momento E.J.S. narra a história de uma nutricionista negra, com um excelente currículo que ele enviou para entrevista com o Diretor de Recursos Humanos, cuja origem era japonesa. Ele afirma que o Diretor não quis contratar a moça por ser negra e chegou a fazer o seguinte comentário: “Essa moça é muito boa, mas se aparecer um fio de cabelo na comida, eu vou ser alvo de críticas”.
Ele partia do pressuposto de que os negros não são limpos, mas ele não assume explicitamente a posição. O preconceito seria do diretor ou dos alemães? Ele se justificava através do medo de ser responsabilizado por um possível acidente na cozinha: como deixar um fio de cabelo na comida. E se o cabelo fosse loiro, não haveria problema? A explicação possível é que os executivos brasileiros em posição subalterna nas multinacionais assumem a expectativa de que os estrangeiros (europeus e norte-americanos) possam ser, necessariamente preconceituosos e os protegem contra aqueles que Chomski denomina de ”raças perigosas” (1996). Na realidade o que sugere nos contatos mantidos com várias organizações pelo autor, o estrangeiro tem uma percepção mais racionalista das relações do trabalho e se coloca de forma mais impessoal. Para ele o que importa é a produtividade, resultados e eficiência. O “colonizado” tem pouca importância para as suas relações pessoais fora das organizações, pois eles se isolam dentro da suas comunidades, com escolas e clubes segregados da comunidade brasileira.

Num outro momento E.J.S. cita um advogado negro, cujo currículo foi muito apreciado pelo mesmo diretor, pelo menos até o momento da entrevista. Como o candidato preenchia todos os requisitos da vaga, o diretor foi explícito e confessou que não ficaria bem um negro nesta posição. Ao exercer funções mais sofisticadas do que um simples serviçal, o negro nega em seu comportamento as representações que dele são feitas (Cardoso: 2003), mas assumir uma posição em que seria não somente um igual, mas estaria entre aqueles mais iguais do que até outros (brancos), seria um acinte.
Para o narrador o diretor brasileiro de origem japonesa representava o papel que ele acreditava que os alemães queriam que o fizesse ou ele mesmo assumia, por sua conta, o possível racismo dos alemães no Brasil. Esse comportamento pode parecer estranho, pois os descendentes de japoneses também sofrem discriminação no país, mesmo sendo mais sutil. É provável que o discriminado busque na discriminação do outro, a aceitação de si mesmo pelo grupo hegemônico. Esse fenômeno ocorre também com negros, que para serem aceitos pelos brancos, criticam o comportamento dos demais negros como se não fosse um deles. Os nipobrasileiros, na realidade, apesar de serem chamados de japoneses, mesmo os de terceira e quarta geração, foram assimilados do lado branco da bipolaridade de status “branco/negro”, herdada da escravidão (Guimarães, 1999:54 e 55).descendentes de japoneses e, sendo eles também discriminados, cultuem o preconceito contra os brasileiros

A discussão com relação ao preconceito dos estrangeiros é bastante fecunda. Bastide e Fernandes (1971) em pesquisa realizada em São Paulo em 1958 identificaram que os negros acreditavam que os estrangeiros aprenderam o racismo aqui, através das antigas famílias. Ter preconceito era uma forma de se elevar socialmente. Outros defendiam a posição de que os estrangeiros, principalmente os italianos, foram os responsáveis pela exasperação das idéias racistas. Como foi mencionado, o diretor era de origem japonesa, uma etnia que também chega a ser discriminada em certos setores de nossa sociedade, apesar de bastante valorizada pela sua capacidade de trabalho. Ao assumir a posição do estrangeiro em posição de comando nas organizações, pode-se comparar como o esmagamento do colonizado, quando este inclui os valores dos colonizadores, adotando a sua própria condenação. Esse fenômeno é semelhante a negrofobia do negro ou o anti-semitismo do judeu (Memmi, 1989).
J.A.V., 52 anos, economista e consultor de Recursos Humanos, lembrou-se de uma história que nunca chegou a pensar que pudesse ser um exemplo de racismo ou discriminação. Ele trabalhava em uma empresa italiana e estava contratando um gerente para uma área de produção. Como na época havia uma grande demanda por profissionais especializados, havia poucas opções de candidatos e o melhor era um negro. Ele comentou que foi difícil convencer a diretoria a contratá-lo, mas acabou prevalecendo a sua opinião. Segundo ele, essa foi uma excelente contratação, foi um dos melhores quadros da empresa. Entretanto ele lembrou que foi visitar o candidato em casa, conhecer sua família, onde e como morava, além de uma profunda investigação sobre a vida passada do mesmo. Essa prática não era aplicada para executivos brancos e aí ficou evidenciado o tratamento diferenciado. Pressupõe-se que um profissional nesse nível que seja branco tem uma credibilidade maior, dispensando qualquer tipo de investigação.

Em outro momento ele explicita suas posições com relação as possibilidades de mobilidade social dos negros

“As pessoas que estudam, se preparam, ocupam um espaço. À medida que as pessoas se propõem a vencer, elas vencem. À medida que os negros se propõem a vencer e vêem isso como um desafio, eles vencem. (...) Então o problema é o indivíduo se posicionar, acreditar que ele pode, então ele vai vencer. Ele precisa provar que é capaz para poder vencer. Se for mulher e negra então, é bem mais difícil para vencer o preconceito” (J.A V.)

Ele finaliza de forma contraditória ao afirmar que o negro precisa provar que é capaz para vencer. O branco não precisa disso, mas o negro precisa provar que é mais capaz. Ao afirmar que se a profissional for mulher e negra, é mais difícil, reafirma a existência do preconceito racial e de gênero. Assim, historicamente “parece provável que os esforços feitos por pessoas não-brancas para cobrirem uma certa distancia social fossem maiores do que os exigidos por pessoas brancas” (Hasenbalg, 1979).
Na mesma linha de raciocínio, J.A.V. continua enfatizando a idéia de que o sucesso profissional depende, fundamentalmente, do indivíduo, como se houvesse espaço para todos, inclusive para os brancos bem educados. Essa percepção faz parte do modelo ideológico disseminado pelo neoliberalismo, em que basta ter força de vontade e competência para vencer na selva competitiva do capitalismo moderno. Os estudos de Pagè e seus colaboradores (Motta, 1992) sobre a mobilidade em grandes empresas francesas identificam que os cargos no topo da pirâmide das organizações são sempre ocupados por descendentes de famílias aristocráticas ou muito influentes. Apesar das diferenças de mobilidade dentro das organizações brasileiras em relação às francesas, o discurso do depoente indica contaminação pela ideologia dominante.
As contratações de profissionais nem sempre obedecem a critérios seletivos em função do nível funcional, mas ocorrem também em atividades de “chão de fábrica” como relata o depoente R.F.O 49 anos, branco, administrador de empresas e consultor de RH. Ele relata que numa empresa americana, bastante tradicional, um supervisor de um setor em que trabalhavam muitas moças como auxiliares de produção, ele era taxativo: “Escurinhas, nem adianta mandar para entrevista”. Nas épocas em que o volume de produção demandava um número maior de empregadas ele era obrigado a aceitá-las, mas quando a demanda se estabilizava, eram as primeiras a serem demitidas. Esse fato indica que realmente o padrão de discriminação está associado, também, aos interesses do capital, que são mais relevantes quando afeta os níveis de acumulação. (Ianni, 1972)
Não seria correto afirmar que as organizações são racistas ou discriminadoras, mas sim os indivíduos que as constroem e aqueles que propagam e conservam a cultura organizacional. Portanto, as organizações fazem parte da realidade social construída pelo homem e como tal, representam a ideologia hegemônica presente na sociedade mais ampla (Berger e Luckman, 1973). O racionalismo burocrático numa perspectiva weberiana, busca a impessoalidade dos profissionais como um fator de eficiência organizacional. A atribuição de funções é feita pela qualificação técnica, determinada por procedimentos formais e impessoais. O princípio fundamental da burocracia é a divisão do trabalho, baseada na especialização de tarefas, conhecimento fragmentado das responsabilidades etc. que garante a manutenção de padrões e evita que haja intromissão indevida de um profissional nas atribuições de outro. (Merton, 1979).

O R.F.O., observa que não havia negros nos escritórios dessa empresa e admite que havia uma orientação geral neste sentido. Essas orientações não são públicas e se questionadas, os representantes das empresas jamais admitirão publicamente uma postura de discriminação ou de racismo. Para Damasceno (2000) e Hasenbalg (1979) o negro precisa ficar invisível nas empresas, pois nos escritórios eles teriam visibilidade, prejudicando o relacionamento com clientes e consumidores. Neste sentido haveria a discriminação de negros e mulatos não somente pela qualificação, mas também por não serem esteticamente adequados. “Nos escritórios não havia negros, mas não havia nada explícito contra, ou melhor, havia sim. O gerente geral pedia que se evitasse, pois o diretor achava que poderia dar algum problema. (caso de uma multinacional americana)” (R.F.O.).

Em outra parte do depoimento ele lembra um caso em que por falta de opção, o gerente geral, um brasileiro, aceitou contratar um candidato negro, mas com algumas ressalvas. Ele precisa provar que não representaria nenhum risco para a organização. Os antecedentes familiares, ao contrário dos brancos, torna-se muito relevante na contratação de um profissional negro. Otavio Ianni, em seu estudo sobre preconceito racial em Curitiba, concluiu que numa situação de forte demanda por empregados o preconceito em relação aos negros diminui, pois a racionalidade do capital supera o racismo. O mesmo ocorreria numa situação de excesso de mão-de-obra no mercado. Neste caso haveria um acirramento do racismo, excluindo os negros do mercado de trabalho (Ianni, 1972).

H.L. outro depoente, 48 anos, branco, Administrador e Gerente de Recursos Humanos se contradiz ao lembrar de uma empresa cujos proprietários eram franceses.

“Lá não tinha muita discriminação, mas como os proprietários eram franceses (e a gente conhece mais ou menos como é a cultura francesa...). Não era uma coisa explícita, mas procurava-se evitar contratações que não fossem dentro dos padrões que os donos estabeleciam. Não havia uma orientação explícita, mas quando se apresentavam candidatos com este tipo de perfil (negros), eles eram preteridos”.

Inicialmente ele declara que não havia muita discriminação, mas depois assume que sim e coloca a culpa nos franceses. A frase sobre a cultura francesa pode revelar o preconceito que os brasileiros acreditam que os estrangeiros têm em relação aos diferentes (negros). É possível que os franceses dessa empresa nunca tenham se manifestado a este respeito, mas os brasileiros podem ter assumido o preconceito em nome deles. Os brasileiros se envergonham dos seus compatriotas negros e mestiços, procurando escondê-los sob o tapete da invisibilidade. Como o preconceito permeia a nossa sociedade, os executivos brasileiros procuram proteger os seus patrões estrangeiros daqueles que eles consideram “perigosos ou feios”, pois apesar de se sentirem “europeus” e ao mesmo tempo brasileiros, incorporam o mesmo estigma do colonizado, mas transferindo para os outros (os negros e mestiços) a inferioridade. Como “colonizado, não procura apenas enriquecer-se com as virtudes do colonizador em nome daquilo que deseja vir a ser, empenha-se em empobrecer-se, em arrancar-se de si mesmo” (Memmi, 1989:107).

H.L. afirma que não haveria possibilidade de discriminar pela cor, desde que o candidato estivesse numa condição favorável em termos de competência, experiência e formação escolar, mas admite que nas mesmas condições em relação a um branco ele estaria em desvantagem, conforme relata: Acredito que para os negros que estão numa condição melhor, não haveria justificativa para reprovar diretamente. Eu nunca vivenciei esse tipo de coisa. Mas nas mesmas condições sim. (grifo do autor).

Isso significa que mesmo tendo acesso a melhores níveis educacionais, dificilmente teríamos condições de igualdade nos processos seletivos, pois como afirmou o depoente, nas mesmas condições de um branco não haveria chance de romper a barreira. Seria preciso apresentar habilidades e competências substancialmente superiores para superar o preconceito m relação ao outro “diferente”. Talvez o setor público apresente as melhores condições para superação das desigualdades, pois como foi mencionado, o processo seletivo está baseado em provas objetivas e os resultados são incontestáveis. Resta saber se haveria possibilidade de mobilidade funcional posteriormente. Bem, aí já é uma outra história.

M.S., psicóloga, negra, Consultora de Recursos Humanos, sentiu na pele a discriminação, mesmo gozando de algum poder dentro das organizações em que trabalhou. Ela narrou que numa empresa estatal, quando trabalha como selecionadora de pessoal, um supervisor pediu que ela não enviasse negros para entrevista. “Eu disse para ele: o senhor sabe qual é a minha cor?”. Num outro momento de sua narrativa ela conta que ao discutir uma questão profissional com uma gerente do mesmo nível, esta lhe respondeu: “Coloque no seu lugar negrinha!”. Qual é o lugar dos negros? Na senzala? A cultura brasileira ainda é permeada de componentes da velha aristocracia rural que parece não ter ainda assimilado, mesmo depois de mais de cem anos, o fim do trabalho escravo.

Os recortes dos depoimentos inseridos no artigo representam apenas parte dos casos de discriminação narrados pelos profissionais entrevistados e ficaram restritos aos aspectos relacionados aos processos de ingressos de profissionais nas organizações. Outras formas de discriminação estão ligadas a mobilidade profissional nas empresas que devem ser tratados de forma específica. Os dados relatados são contundentes e revelam as sutilezas de um sistema social que segrega “amigavelmente” o diferente, evitando a exposição dos algozes aos ditames da lei.

Considerações finais

Mesmo considerando as limitações implícitas neste trabalho cuja natureza é ainda exploratória, há fortes indícios da existência de práticas discriminatórias com relação ao outro, o diferente. As práticas não são deliberadas e não partem de políticas ou filosofias empresariais, mas está presente na herança cultural de toda uma sociedade, em todos os níveis e classes sociais. As organizações empresariais em seus estatutos ou políticas formalmente escritas não explicitam tais atitudes, mas as pessoas que as dirigem ou mesmo aqueles “pequenos” burocratas que detém algum poder respaldado pelas próprias normas organizacionais, cuja interpretação lhes asseguram algum nível decisório, podem em algum momento, utilizar critérios pessoais que resultam em discriminação.

Os depoimentos ilustram claramente o que foi afirmado. As empresas nas quais os depoentes trabalharam ou trabalham, nunca deixaram claro que esperavam deles esta ou aquela atitude. Talvez por omissão, talvez por serem consideradas desnecessárias. As práticas relatadas explicitam de modo inequívoco a presença na sociedade de uma herança cultural repleta de preconceitos, percepções equivocadas e petrificadas sobre a existência de uma hierarquia entre os grupos humanos. Outro dado que merece destaque é a percepção de que o estrangeiro compactua com este estado de coisas, quando pode ser apenas um preconceito transferido para o outro, ou a idéia de proteger o outro contra aqueles que são considerados indesejáveis. Um dos depoentes afirmou: “Você sabe como são os franceses...”, em relação a idéia de que os franceses são etnocêntricos e que não gostavam de pessoas negras. Outro se preocupava com a possibilidade dos diretores alemães não aceitarem a possibilidade de uma cozinheira negra cuidando da sua comida. Esses preconceitos, estariam na mente dos próprios brasileiros, contaminados por séculos de discriminação do outro, decorrência de um passado escravista. Evidentemente não se tem a pretensão de excluir os estrangeiros de qualquer possibilidade de práticas racistas, mas considerando a lógica empresarial e os pressupostos da racionalidade administrativa, parece possível que essas questões seriam pouco relevantes para os resultados organizacionais em um outro país.

Em princípio, pode-se descartar a relação entre práticas discriminatórias e a origem da empresa, mesmo que isso possa ocorrer de forma isolada. Alguns depoentes consideram que algumas empresas multinacionais têm apenas um discurso de ação afirmativa, mas na prática pouco fazem para a concretização dessa política. Outro entende que as empresas brasileiras são mais abertas do que as multinacionais, não criando obstáculos à contratação de afro-descendentes em seus quadros, mas admite em outro momento do depoimento que em alguns setores mais tradicionais da economia, isso não se concretiza.

Outra questão relevante que foi discutida é a “boa aparência”, uma metáfora que pode estar ocultando um profundo preconceito com relação ao outro. Seria ilusório pensar que o selecionador de pessoal ao receber uma solicitação de funcionário que mencione “boa aparência” consideraria a possibilidade de contratar o diferente, o “outro”. Os meios de comunicação impõem um padrão estético à sociedade, que mesmo sendo multi-étnica, acaba incorporando esses valores.

Entretanto, é preciso ressalvar, que muitas organizações vêm adotando ações afirmativas, principalmente as grandes corporações multinacionais, que por estarem instaladas em várias partes do globo e frente a frente com a diversidade cultural e étnica, consideram essas ações como necessidade estratégica para sobrevivência num mercado globalizado.

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RESENHA

RAÍZES DO BRASIL
Renato Ladeia

As mazelas do Brasil vêm sendo analisadas por vários intelectuais brasileiros e alguns estrangeiros que procuram explicar as causas crônicas do subdesenvolvimento econômico, político e social. Por que um país rico em recursos naturais, sem problemas de unidade nacional, já que não temos movimentos separatistas, conflitos religiosos ou raciais, não consegue decolar economicamente e resolver seus graves problemas sociais, principalmente a desigualdade regional? O Brasil é realmente um país bastante complexo. O processo de independência política em relação à metrópole portuguesa se deu a partir de conchavos entre as elites dirigentes e um príncipe regente aqui deixado com propósitos sub-reptícios. A unidade nacional foi mantida, segundo alguns historiadores, graças ao sistema escravocrata, que permitia a sustentação do sistema econômico voltado para a monocultura do açúcar baseado no trabalho escravo.
Há consenso de que a fragmentação do território colocaria em risco esse sistema e mesmo com os movimentos revolucionários ocorridos no nordeste e no extremo sul durante o século XIX, a aristocracia rural sempre procurou se manter coesa em defesa os seus interesses econômicos e políticos. A proclamação da República, longe de ter sido um movimento revolucionário, foi também um processo de acomodação em decorrência do desgaste do sistema monárquico, principalmente em função da abolição do sistema escravista sem uma compensação econômica aos proprietários rurais e do processo sucessório do imperador.
As elites brasileiras do século XIX tinham sólidas raízes ibéricas e é a partir dessa base cultural que Sergio Buarque de Hollanda finca as estacas de sua análise, apoiando-se nas teorias da Antropologia Cultural norte-americana. Nesta análise, o autor procura explicar através do espírito lusitano, formado pela busca incessante de aventuras e com dificuldades em se estabelecer através do trabalho sedentário, a ausência de vínculo entre essas elites e a nova nação que se formava. A tipologia do “homem cordial” formulada pelo autor tem sido ao longo dos 70 anos da publicação de Raízes do Brasil, pouco compreendida. Essa cordialidade é descrita como a aversão do homem brasileiro às relações formais, característica do sistema burocrático racional. É uma cordialidade que se instala através das relações de compadrio, em que preponderam os interesses de caráter particularista em detrimento dos interesses públicos. Portanto, enganam-se aqueles que entendem essa cordialidade como uma virtude. Ao contrário, ela explica o desprezo atávico pela racionalidade, pela separação entre o que é público e que é privado, pela justiça imparcial, enfim, pela democracia em seu sentido mais amplo. Aliás, Hollanda afirma que a democracia no Brasil foi um “lamentável mal entendido”, pois a idéia de uma democracia liberal nunca foi bem digerida pelas elites pois o Estado sempre foi visto como uma extensão do privado, das relações do tipo primário em que a família, os agregados e amigos vem em primeiro plano. Frases como “para os amigos tudo, para os inimigos a lei”, ainda presentes em nosso cotidiano político, é o reflexo da incompreensão do sentido da rés-pública.
A análise fundada nos tipos ideais de Max Weber pode suscitar críticas pelo rigor metodológico, mas é inegável a sua contribuição para se compreender o Brasil e os brasileiros, principalmente as suas elites. A erudição do autor, um devorador de livros segundo depoimentos de seus antigos companheiros, apresenta algumas dificuldades para o leitor pouco familiarizado com uma linguagem acadêmica, principalmente por citações não traduzidas. Raízes do Brasil, com uma edição moderna e bem cuidada pelos editores, volta às livrarias, desta vez com excelentes comentários de intelectuais do calibre de Antonio Cândido, Evaldo Cabral de Mello, Bolívar Lamounier entre outros. É um livro atual e necessário para se entender o Brasil, pois ainda sobrevive entre nós a dificuldade de romper com os particularismos sociais e políticos, condições essenciais para atingirmos a maturidade como Estado moderno.

Raízes do Brasil, Edição comemorativa de 70 anos. Sergio Buarque de Hollanda. Org. de Ricardo Benzaquen de Araújo e Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo, Cia. Das Letras, 447 p


TEMPOS MODERNOS E A REORGANIZAÇÃO PRODUTIVA


Rever Tempos Modernos de Charles Chaplin é sempre um aprendizado, uma nova experiência que é preciso viver. Não sei se o genial cineasta havia lido “Os Princípios da Administração Científica” de Frederick Taylor, mas com certeza conhecia muito bem as linhas de produção da Ford, pelo menos pelo noticiário da imprensa. Sua percepção sobre as linhas de montagem, a produção seriada, a extrema divisão do trabalho que levava a um nível de especialização do trabalhador que Gramsci, com alguma razão, afirmou que o modelo estava transformando o trabalhador americano em burros amestrados. É evidente que a leitura daquela realidade através da arte cinematográfica tem os seus exageros, necessários para imprimir uma maior dramaticidade e comicidade ao filme, mas na sua essência, reflete o modo como se desenvolviam as relações $o trabalho na época.
Através de elementos simbólicos, Chaplin vai construindo sua crítica profunda ao sistema. Inicialmente mostra um relógio, o símbolo do controle do tempo, o “time is money”, marcando o horário de entrada no trabalho. O controle do tempo através das técnicas de “tempos e métodos” foi fundamental para o aumento da produtividade e redução de custos, numa época em que era preciso produzir em grande escala para atender a crescente demanda de mercado. Em seguida o filme mostra um bando de carneiros ou ovelhas caminhando ordeiros para o matadouro ou a tosquia. Nessa cena a crítica sugere ser ferina, ao apresentar os trabalhadores como autômatos, desprovidos de idéias, adestrados para atividades repetitivas. A visão da linha de produção, ainda que de forma simbólica, com o nosso herói apertando parafusos compulsivamente, sem saber para que fim, indica a alienação do operário, sem uma visão do objetivo do seu trabalho, que de tão fragmentado, perdia-se a noção de sua finalidade.
A cena em que é testada uma máquina construída para alimentar os trabalhadores segue na linha de crítica à tecnologia, utilizada para explorar ao máximo o tempo do trabalhador na linha de produção, aproveitando seus momentos de descanso, como o horário de almoço e a parada para o café. A cena é engraçada e absurda, mas representa a idéia da maximização da produtividade, hoje construída sob formas mais sutis. A prática de empresas modernas, de fornecerem aos seus funcionários um celular, pode representar a possibilidade de utilizar o tempo de descanso do trabalhador, pois estará sempre disponível para ser chamado ou consultado sobre problemas da organização. Outra forma moderna de utilização maximizada do tempo do trabalhador, é a Internet, permitindo que funcionários possam despachar, resolver problemas ou mesmo preparar relatórios e enviar à empresa enquanto está em casa ou no clube. Pode parecer descabida a utilização de uma máquina de alimentar, mas Chaplin parece ter tido uma premonição com relação ao uso da tecnologia para cooptação integral da força de trabalho.
Quando o nosso Carlitos vai ao sanitário para fumar um cigarro e dar uma relaxada, aparece a figura sinistra do presidente da empresa invadindo sua privacidade e o despachando rapidamente para o trabalho. Essa cena lembra o romance “1984”, de George Orwell, publicado em 1948, antevendo, numa visão futurista e pessimista da sociedade humana, um mundo dividido em duas grandes potências hegemônicas. O mundo em “1984” é manipulado por um sistema de comunicação governamental em que os fatos são apagados ou resgatados, dependendo dos interesses das grandes potências. No romance de Orwell, o personagem O’Brien é vigiado dia e noite pelo Big Brother através da tele-tela. A tele-tela em Tempos Modernos seria uma televisão multidirecional, semelhante a de “1984”, permitindo a comunicação dos dois lados. Esse tipo de tecnologia para controle dos funcionários não era disponível na época de Chaplin, pois a televisão ainda estava dando seus primeiros passos. Orwell deveria ter dado os créditos para Chaplin em seu romance, pois quinze anos antes ele já havia “inventado” a máquina de bisbilhotar.
O operário hilário acaba ficando maluco no interior da fábrica, desenvolvendo uma compulsão doentia para apertar tudo que fosse semelhante a um parafuso. Considerado um alienado, Carlitos é internado num hospital psiquiátrico para tratamento. Ao sair, caminha desolado pelas ruas a procura de emprego, mas as fábricas estão fechadas e o povo está nas ruas para protestar. Ao pegar uma bandeirola vermelha que cai de um caminhão, o pobre Carlitos passa a ser seguido como um líder pelo povo esfomeado que faz protestos nas ruas de Nova York. O cineasta nesta cena mostra o quanto as massas podem ser facilmente manipuladas por alguém capaz de insuflá-las para atingir seus objetivos políticos, bastando levantar uma “bandeira”. Mas é na metáfora da prisão que Chaplin faz sua crítica mais sutil contra o fordismo-taylorismo, deixando subentendida a comparação entre o presídio e uma organização empresarial. Muito tempo depois, dois sociólogos organizacionais, Enriquez (1976) e Morgan (1986), vão analisar as organizações pelo seu lado mais sombrio, através da metáfora de prisões psíquicas, pelo poder de recalcamento e repressão que exercem sobre os indivíduos.
Mas o filme é sobretudo muito divertido e ainda consegue arrancar gargalhadas de jovens em pleno século XXI, já condicionados aos efeitos especiais das grandes produções de Hollywood. Infelizmente, poucos ainda conseguem perceber, entre as estripulias do palhaço com seus modos elegantes, uma profunda crítica social. Entretanto, nos anos trinta, os governantes perceberam isso rapidamente e o filme foi proibido em países como Alemanha e Inglaterra, pois poderia representar sérios problemas caso os trabalhadores percebessem, entre uma gargalhada e outra ou mesmo ao ver o filme pela segunda vez, que estava na hora de transformar o trabalho em algo mais prazeroso e menos alienante. Elton Mayo e sua equipe tinham acabado de perceber isso e já estavam lançando as bases para uma nova escola da Administração: As Relações Humanas. Essa escola representou uma crítica ainda tímida ao sistema vigente de organização produtiva. A utilização da abordagem sistêmica de Von Bertalanffy na Administração, algum tempo depois, vai colocar o fordismo-taylorismo mais uma vez no banco dos réus, ao defender uma visão sistêmica do trabalho. Mas que ninguém fique muito animado, porque isso ocorre muito mais na teoria do que na prática, pois muitas organizações ainda utilizam a especialização e o controle do tempo em suas plantas. O McDonald e suas linhas de montagem de sanduíches é um retrato retocado da releitura desse modelo em pleno século XXI.

PENSATA
Revista Relações Humanas do Centro Universitário da FEI. N.o. 23, dezembro de 2006, pg. 70 a 71.

O “DE PALLIO” E A ROMANIDADE DE TERTULIANO (*)
Renato Ladeia


A tese de doutoramento em História Social, defendida no departamento de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em 1976, por Flávio Vieira de Souza refere-se a uma tradução crítica do opúsculo Do Pallio de Quintus Septimus Tertulianus Florens, autor cristão latino, nascido em Cartago, na África do Norte, que viveu em fins do século II e início do século III D.C. Na tese, o seu autor, precede a tradução com a apresentação da vida e obra do autor visando a sua contextualização histórica. A tradução foi baseada na edição de A.Gerlo . O trabalho é enriquecido com comentários clássicos, especialmente de Claude de Saumaise. A tradução alemã de H. Kellner, da Bibliothek der Kirchenväter, Munique, 1912, também serviu de apoio.
A tese, apesar da existência de um outro trabalho de livre-docência na cadeira de Língua e Literatura Latina da FFCL da USP, do prof. Dante Tringali se caracteriza pelo ineditismo no idioma português ao abordar o tema de forma diferenciada, com uma oportuna abordagem histórica. Não há, conforme as palavras do autor, uma excessiva precisão lingüística e estilística, o que dá ao trabalho de tradução um estilo mais leve, mais fluido, sem a aspereza do original em latim.
A tese, além da tradução crítica do texto de Tertuliano, descreve o momento histórico do escritor, bem como a sua formação cultural e intelectual dentro do espírito romano e a influência africana na defesa do cristianismo.
O primeiro capítulo da tese, reproduzido nas páginas seguintes deste caderno, é dedicada a Tertuliano, sua vida e sua obra, apresenta uma série de notas explicativas referenciadas por obras clássicas o que é indicativo da elevada cultura erudita do autor da tese. O segundo capítulo, Época de Tertuliano, “... coincide com um momento importante da História de Roma: início do que se convencionou chamar a crise do III século, época de profunda transformação, que prepara os novos caminhos de Diocleciano e Constantino e que tem suas primeiras raízes no tempo de Marco Aurélio” (p. 29). O capítulo III, Tertuliano, o Autor Do De Pallio, destaca-se pelos elogios ao estilo do escritor cristão e sua vasta erudição, pois escreveu também em grego, muito embora suas obras no idioma de Aristóteles não tenham chegado até nós. Por estas e outras razões, Tertuliano, é considerado por Harnack como o verdadeiro criador do latim eclesiástico.
No capítulo IV, O De Pallio, encontram-se as referências sobre a obra traduzida e analisada, bem com o propósito da tese: “A atermo-nos ao conteúdo deste opúsculo, trata-se de uma defesa. Tertuliano justifica-se diante de seus concidadãos por um usar o pálio em lugar da toga. É uma obra cheia de vivacidade, originalidade e ironia, e repleta de referências à cultura literária da época” (p. 48). No capítulo V, de Pallio e o Império Romano, é descrito como a obra foi vista pela maioria dos críticos que a via como uma das habituais objurações de Tertuliano contra os pagãos romanos, simbolizados pelo Império. O pálio, símbolo da simplicidade e da moralidade, opõe-se à toga, veste nacional dos romanos, aqui equiparada à decadência moral.
O Prof. Flavio Vieira de Souza conclui que, embora o estilo não fique muito longe das demais obras de Tertuliano, a temática da obra decepciona aqueles que se habituaram a ver nele um escritor sisudo. Ao fazer a defesa de uma vestimenta diferente, uma crítica aos costumes da época, o escritor mostra-se um cronista mordaz e severo da sociedade pagã (p. 139 e 140).
Enfim, apesar da tese sugerir um interesse mais restrito aos historiadores especializados em temas da antiguidade clássica, vale a pena a sua leitura pela riqueza de detalhes sobre o momento histórico nos primeiros séculos do cristianismo. O texto de Tertuliano, pela riqueza de detalhes sobre a cultura e valores da época e pelo método de exposição e defesa do tema, mostra-nos os profundos conhecimentos do escritor sobre o seu tempo. Além disso, é sobejamente curioso entender como uma questão aparentemente sem relevância como o uso de uma indumentária podia suscitar tanta polêmica. A crítica de Tertuliano tem um caráter moralista e o texto elegante do tradutor nos permite perceber a ironia do escritor ao comentar os hábitos de vestimentas reinantes e suas mudanças, quando afirma: “Portanto tais pessoas que mudam os trajes naturais e decentes merecem que o povo as fixe com olhar severo e as aponte com o dedo balançando a cabeça” (pg.81).
Apesar de a temática ser aparentemente árida para os não habituados aos temas clássicos, a tese permite uma excelente oportunidade de um contato com o cotidiano do Império Romano nos primeiros séculos da era cristã. Isso através de um texto bem escrito e ao mesmo tempo fluido e entremeado de bom humor, condição que faz justiça ao nosso saudoso tradutor.
GLOBALIZAÇÃO E ETNICIDADE

Resumo
O ideário da globalização no sentido da ruptura das fronteiras nacionais, o desenvolvimento do livre comércio e a possibilidade de inclusão dos países periféricos ao padrão de vida dos países capitalistas centrais parece não estar se concretizando. O que se observa é a ampliação das desigualdades entre as nações e um processo de fragmentação dos Estados Nacionais em decorrência dos conflitos étnicos e dos movimentos de resistência a este modelo econômico.

Abstract
The ideal of the globalization in the sense of the rupture of the national borders, the development of the free trade and the inclusion possibility of the poor countries to the rich countries standard of living don't seem to be rendering. We can to see is the amplification of the inequalities between the nations and people and a process of fragmentation of National States due to the ethnic conflicts and of the resistance movements to this economical model.

Palavras chaves:
Globalização, capitalismo e conflitos étnicos.

Keys Word:
Globalization, capitalism and ethnics conflicts.


INTRODUÇÃO
A proposta deste artigo é uma reflexão sobre uma relevante questão que se apresenta à modernidade: a etnicidade. Por que esses movimentos estão eclodindo de forma ampla em quase toda a extensão do globo, indicando um paradoxo com o ideário da globalização, da mundialização, economia mundo, aldeia global e outras metáforas? Um pressuposto bastante caro à globalização, de acordo com os modernos ideólogos do neoliberalismo como Porter (1999) e Omahe (2000), é de uma sociedade mundial sem fronteiras ou barreiras econômicas ou culturais, proporcionando aos países que abrem suas fronteiras à economia de mercado, a possibilidade de crescimento econômico, inclusão e superação da pobreza e da desigualdade social.
Entretanto, as resistências ao processo de mundialização econômica demonstram que a teoria do fim da história formulada por Fukuyama (1992), indicando o ocaso da luta de classe e o conseqüente triunfo definitivo do capitalismo neoliberal, dá sinais claros de esgotamento. Nesse imbroglio, ao invés da homogeneização, o que se observa é a fragmentação, com o fortalecimento ou mesmo o ressurgimento de movimentos étnicos, buscando a reafirmação das identidades de povos até então obscurecidas em Estados Nacionais.
A própria versão da globalização, como uma teoria acadêmica, vem encontrando fortes resistências, abrindo-se perspectivas para o surgimento de teorias alternativas a este modelo. A globalização é um constructo ideológico do modelo econômico neoliberal, formulado com base na realidade que visa fundamentalmente ocultar essa mesma realidade. A idéia, propagada pelos arautos da globalização, de homogeneização do padrão de vida existente nos países centrais ou hegemônicos para os países periféricos é uma utopia, pois sempre haverá uma hierarquia no sistema, que é fundamental para a sua existência como tal (Wallerstein, 1996).
Mesmo ideólogos do neoliberalismo, após a breve euforia universalizante que se seguiu ao colapso do “socialismo soviético”, já admitem, que, nesta “nova ordem mundial” que tanto edulcoraram, não haverá lugar para todos (seres humanos e países) (Almeida, 1997:177).

Dessa forma, esse sistema tem acirrado as desigualdades e ampliado o nível de pobreza, com o desencadeamento de crises regionais e fomentação dos movimentos étnicos através da fragmentação de estruturas sociais, reduzindo a capacidade de intervenção dos Estados Nacionais para o estabelecimento de um equilíbrio estável.

Etnicização
Os movimentos de etnicização estariam relacionados ao processo de globalização gerando movimentos de xenofobia em várias partes do mundo ou esses seriam movimentos espontâneos sem nenhuma relação direta com o processo de mundialização das economias? Para esta questão não se pode deixar de considerar a diversidade cultural, as classes sociais, as tribos, nações, indivíduos, pois são eles e não países e organizações empresariais que na realidade se globalizam (Ianni, 1999).
Habermas (2000) lembra também que a estruturação do sistema produtivo em redes, favorece a multiplicação de contatos e informações, mas não possibilita, necessariamente, um mundo compartilhado. A possibilidade dos processos sistêmicos adquirirem vida própria, e poderá levar a um processo de fragmentação, com múltiplas aldeias globais, isoladas e sem pontos de contato entre elas. Em conseqüência, a globalização pode favorecer a xenofobia, resultando nos chamados processos de “limpeza étnica”, em que identidades nacionais majoritárias, por razões de natureza econômica, religiosa ou mesmo política, desenvolvem fobia aos diferentes, como um vírus ameaçador.
A xenofobia é vista como o medo do “vírus externo”. São todos os sintomas de desorientação social, do esgarçamento e, às vezes, da ruptura dos fios do tecido social que ligava as pessoas na sociedade. A força dessa xenofobia é o medo do desconhecido, das trevas em que podemos cair quando desaparecem os marcos que parecem proporcionar uma delimitação objetiva (Hobsbawn, 2000). “Xenofobia parece estar-se tornando a ideologia de massa deste “fin de siécle”. O que hoje une a humanidade é a negação de que a espécie humana tem em comum”. (p.282).
Numa perspectiva política e econômica, Poulantzas (1998), entende que a internacionalização intensiva do capital provoca o fracionamento das nações, pois longe de representar um processo de cooperação internacional, corresponde, a rigor, na acumulação ampliada do capital global sob controle da nação hegemônica, criando novas estruturas de dependência e gerando a desarticulação interna das formações nacionais e das economias. É sobre esta desarticulação que são criadas as raízes da desintegração das unidades nacionais capitalistas. Essa posição nega ou omite a interferência de fatores étnicos e culturais nos movimentos de reafirmação de identidades étnicas regionais, estando vinculados apenas com o processo de internacionalização do capital.
Não é possível também afirmar que os atuais movimentos de etnicidade estão desvinculados do sistema capitalista de produção, pois as condições materiais da sociedade podem engendrar determinadas relações sociais e culturais, gerando, por conseqüência, atitudes etnocêntricas em função das contradições sociais e econômicas presentes na sociedade. A apregoada união dos povos e das culturas, utilizada como discurso ideológico dos defensores da globalização, não se realiza nem no nível simbólico, pois as fronteiras “permeáveis” do mundo globalizado se fecham cada vez mais para as populações do Terceiro Mundo, com o elevado nível de discriminação das culturas não ocidentais (Bogus, 1997).
Para Breuilly (2001) a identidade étnica não é novidade, mas pelo contrário, existe há séculos ou talvez há milênios. Assim, esses movimentos de identidade não estariam relacionados aos modos de produção historicamente estabelecidos, mas às formas básicas de convivência social ao longo do processo do desenvolvimento humano. Smith, apud Breuilly define ethnie como “populações humanas” dotadas de um nome, com mitos ancestrais, histórias e culturas comuns, associadas a um território específico e a um sentimento de solidariedade. Poutgnat e Streift-Fenart (1997), numa interpretação weberiana do sentido da etnicidade, afirmam: “... a etnia, como a nação, fica do lado da crença do sentimento da representação coletiva, contrariamente à raça, que fica do lado do parentesco biológico efetivo” (p. 41).
A etnicidade deve ser debatida no contexto da globalização, como uma construção social. A abordagem genética da etnicidade não se reveste de importância para o estudo do fenômeno, pois o que efetivamente importa é compreendê-la como uma construção, um elemento da cultura dos povos (Hobsbawn, 2000). É preciso também considerar que houve uma evolução no debate em torno desta questão, pois “o que se observa de diferente nessa xenofobia é que o debate gira em torno das diferenças culturais e da conduta social, e não mais da superioridade biológica” (Wallerstein e Balibar apud Bogus, 1997). Neste sentido, parece justo concordar com Hobsbawn quando ele afirma que raros são os grupos étnicos que apresentam homogeneidade em termos fenótipos que justificaria alguma importância biológica. A maioria dos chamados grupos étnicos é formada por várias etnias e ou “raças”, cujas identidades grupais estão ligadas a valores culturais, religiosos ou mesmo de natureza política e econômica.
Na perspectiva cultural de Poutignat e Streiff-Fenart (1997), a etnicidade é vista como o processo pelo qual as pessoas, por meio das diferenças culturais, comunicam idéias sobre a distintividade humana e tentam resolver problemas de significação. Neste contexto, a língua torna-se importante não apenas como um repositório da cultura e da memória nacionais, um armazém de mitos, mas também como uma questão de interesse político, econômico, jurídico e educacional. (Breully: 2000). Entretanto, a língua escrita padronizada utilizada para representar a etnia ou a nacionalidade, é uma construção social, historicamente recente (século XIX e até posterior), como afirma Hobsbawn (2000). A Itália é um exemplo acabado de um idioma nacional utilizado por menos de cinco por cento da população da península na época da unificação. Assim, o papel de uma língua nacional padronizada com vistas à entronização dos valores de uma nacionalidade, verdadeiros ou falsos, é essencial no sentido da criação de uma identidade.
A etnia, por outro lado, seja ela qual for, não é programática e muito menos constitui um conceito político. Em certas circunstâncias, pode adquirir funções políticas e, por conseguinte, ver-se associada a projetos, inclusive nacionalistas e separatistas (Hobsbawn, 2000). Modernamente, há vários exemplos de utilização da etnia para formulação de projetos de formação de Estados Nacionais, não importando se são economicamente ou estrategicamente viáveis.
Para Hobsbawn (2000), são poucos os movimentos nacionalistas modernos que estão fundamentados em algum tipo de consciência étnica. Na maioria das vezes, podem estar ligados a elementos religiosos ou mesmo econômicos, fato que não impedirá que no futuro, esses mesmos grupos desenvolvam atitudes de discriminação racial e de intolerância. Um exemplo atual desse fenômeno é o conflito entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte. A origem do conflito está vinculada ao processo de ocupação do território irlandês pelos ingleses no século XVII que se apropriaram das melhores terras, desalojando a população local, predominantemente católica.
Registre-se também que o nacionalismo moderno não pode prescindir de uma identidade étnica forte e persistente para poder se viabilizar (Breuilly, 2001). Essa identidade pode ser construída a partir de elementos ideológicos, sedimentados através do processo de educação em que o idioma tem uma importância fundamental. Entre os franceses foi construído o mito de que são descendentes dos gauleses e não dos francos, povo germânico, que ocupou a atual França. Mesmo sendo historicamente incoerente, esta versão foi incentivada por ideólogos como Gobineau com o objetivo de criar uma identidade nacional distinta dos alemães. (Hobsbawn, 1998).
A idéia de nação pode ter significados pouco dignificantes, pois eles podem possibilitar a expressão de políticas de exclusão no sentido mais perverso, como o racismo nazista. A constituição da nação alemã serviu de instrumento para garantir a mobilização da população em favor de políticas suicidas. Sob uma perspectiva histórica, é interessante lembrar também, que o conceito de nação está associado, no passado, a idéia de rechaçar tudo o que é diferente, estrangeiro, aumentando a rejeição às outras etnias, outras religiões e minorias nacionais (Habermas, 2000).
Etnicidade e condição social
Em alguns casos a classificação racial se identifica com a posição social, sem nenhuma relação com caracteres fenótipos. É o exemplo de países andinos como Peru e Colômbia, onde os indígenas que se agrupam às classes sociais de nível inferior, são classificados como “mestiços” ou cholos, independente dos traços físicos que possam ter (Hobsbawn, 1998). Em outros exemplos como os irlandeses ou italianos nos EUA, o preconceito manifestado pelas populações de origem inglesa, não apresenta nenhuma relação com o fenótipo, pois não importa se são brancos, mestiços ou negros. O que importa no caso é a origem e condição sócio-econômica.
Alguns autores defendem que as divisões étnicas e raciais também podem ser vistas sob um quadro mais amplo da exploração do capital sobre o trabalho. Assim podem preencher a função de uma ideologia que justifica a criação de uma força de trabalho barata ou um exército industrial de reserva. Bonacich (1972), apud Pontgnat e Streff-Fenart (1998), afirma que os antagonismos entre imigrados e nativos estão fundamentados na segmentação do mercado de trabalho: a divisão dos trabalhadores de acordo com critérios étnicos ou raciais não deriva de preconceitos em relação a pessoas de outras “etnias”, mas a tendência do capitalismo estabelecer o menor valor possível para o trabalho. Afirmar isso seria negar o etnocentrismo como um componente da cultura universal, que é o ponto de vista segundo o qual, cada povo valoriza seu modo de vida em relação aos demais e é originário do processo inicial de endoculturação (Herskovitch, 1971).
Wallerstein (1988), apud Poutingnat e Streiff-Fenart (1998) numa percepção marxista tradicional, acredita que a etnicidade pode ter um papel na dissimulação do conflito de classe e, na hipótese de serem superadas as contradições inerentes a este conflito, as diferenças étnicas desapareceriam, abrindo espaço para uma sociedade harmônica. Nessa hipótese, a identidade étnica não seria uma construção da noção de um povo, mas apenas uma forma de ocultar os interesses econômicos e sociais de classe. Essa hipótese poderia induzir à idéia de que a classe dominante estaria incentivando esses conflitos como mecanismo de ocultação ideológica de uma realidade.
Outra hipótese que pode ser aventada, é que os conflitos étnicos surgem a partir da constatação de que os imigrados podem estabelecer concorrência direta com os nativos, gerando assim conflito de interesse na disputa pelo mercado de trabalho. Essa situação se aplica em momentos de crise econômica com a ampliação do nível de desemprego. Os trabalhadores ameaçados com o desemprego se voltam contra os imigrados ou outras minorias como se fossem uma ameaça perigosa ao “status quo” e não contra o sistema capitalista que manipula de acordo com seus interesses a oferta de postos de trabalho.
Ressalte-se também, que competição acirrada por empregos no processo de globalização cria um exército industrial de reserva em nível global, possibilitando ao capitalismo o gerenciamento do fluxo de capitais de acordo com as possibilidades de acumulação crescente. Esse mecanismo deixa os movimentos trabalhistas à mercê da movimentação dos capitais em escala mundial, transferindo um problema que é sistêmico, para o âmbito particular de cada formação nacional.
No entanto, em épocas em que ocorre um certo equilíbrio entre oferta e procura de força de trabalho, os trabalhadores seriam levados a abandonar ou atribuir menos importância às auto-representações recíprocas, apagando-se ou reduzindo-se as manifestações discriminatórias (Ianni, 1982). Assim, as discriminações contra os trabalhadores brasileiros em Portugal, mesmo os brancos e bem educados, estariam relacionados mais a disputa pelo mercado de trabalho. Da mesma forma a discriminação contra os trabalhadores de outras regiões em São Paulo, que expõe de forma cruel à desigualdade e a miséria, ampliando o número de favelas e moradores de rua, representaria muito mais o medo do “contágio” do que necessariamente um movimento de afirmação étnica contra os diferentes.
A questão econômica é portanto relevante, pois “está sobrando gente, não só no Brasil, mas em escala planetária” (Almeida, 1997:182). Assim, os estratos dominantes transferem para o nível dos trabalhadores o conflito inevitável entre o capital e o trabalho, pois disputando empregos para garantir a sobrevivência, deixa-se de colocar em debate questões essenciais.
Sob uma outra perspectiva, Chomski (2000), chama a atenção para o fato de que os conflitos étnicos podem surgir de uma guerra disfarçada, ocultada ideologicamente sob uma falsa realidade. É o combate ao crime, a “Guerra das drogas”, nos EUA. que tem um alvo preciso, os afro-americanos, estabelecendo uma correlação entre raça e classe social, que torna natural o processo repressivo. “Homens negros são considerados população criminosa” (2000: 39). O racismo neste caso é mais claro, pois se cria o estereótipo de que os diferentes, as minorias, são naturalmente incapazes, violentos, sujos e facilmente atraídos para o crime e que por isso precisam ser excluídos de qualquer programa de recuperação.
A reestruturação global pode não ficar nos limites de etnias, “raças”, culturas, grupos religiosos, mas pode atingir também os gêneros. Arrighi e Silver (2000), defendem a hipótese que o trabalhador masculino é uma “espécie ameaçada de extinção”, e que as transformações econômicas estão criando novos agentes e fontes de conflito. Também, a utilização intensiva de mão-de-obra feminina pode ser interpretada como a busca incessante do capital por mão-de-obra abundante, ampliando o “exército de reserva”, não só nas linhas de produção, como também nos postos administrativos de alto nível. Kurt (1994) apud Arrighi e Silver, lembra que o maior movimento político da segunda metade do século XX foi o das mulheres que saíram de casa para as fábricas e escritórios. Daí surgiram os movimentos políticos como o feminismo, com várias demandas como a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho. Esse movimento produziu reações violentas por parte de grupos conservadores que defendiam valores tradicionais nas relações entre gêneros, criando novos focos de conflitos.

Considerações finais
Enfim é preciso ter em mente que todos vivemos em sociedades pluralistas, que se distanciam mais e mais do formato do Estado Nacional baseado numa população mais ou menos homogênea em termos culturais. A diversidade das formas culturais de vida, dos grupos étnicos, das visões de mundo e das religiões já é imensa, ou pelo menos está em franca expansão. Excetuadas as políticas desumanas de “limpeza étnica”, não há alternativa para essa rota em direção a sociedades multiculturais (Habermas, 2000).
Corroborando a idéia de que viveremos numa sociedade cada vez mais pluralista, dados do Banco Mundial (1995), estimam que cerca de 125 milhões de pessoas vivem fora de seus países de origem, procedendo cada vez mais de países pobres em direção aos países mais ricos. Esse número é sempre crescente e gera a perspectiva de que os conflitos étnicos podem ser multiplicados ao longo dos anos. Com esses dados, é possível que o biólogo Edward Wilson (2002), esteja certo ao afirmar que a homogeneização genética da população mundial através da miscigenação, é uma tendência irreversível e as chamadas raças biológicas devem ficar cada vez mais indistintas a cada geração.
Anderson (2000) considera também que a chegada dessas populações nos mais variados países, representa um enorme desafio para os Estados Nações, pois pode representar uma ameaça à auto-imagem das populações tradicionais. Os estrangeiros são normalmente diferentes, com variadas cores de pele, diversas línguas, hábitos, comportamentos, muitas vezes bastantes diferentes dos padrões conhecidos pelas populações locais. Em alguns casos, para evitar problemas de rejeição,tenta-se restringir a entrada de imigrantes aos descendentes que imigraram para outros países como foi o caso do Japão. Entretanto, os imigrantes brasileiros de origem japonesa que ingressaram no país como “dekasseguis”, apesar da aparência, são culturalmente brasileiros, bastante diferentes dos padrões locais. É essa diferença, de natureza cultural, que leva a discriminação e as dificuldades de integração dos brasileiros no Japão, apesar de serem, aparentemente, japoneses.
E a cidadania, como seria colocada frente a esta discussão sobre etnicidade, conflitos étnicos, discriminação etc.? Vieira (2001) lembra que nas sociedades multiculturais, a cidadania é uma dimensão política diferente da base étnico-cultural do Estado Nação. O Estado é o lugar de todos os cidadãos, mas a pessoa humana é mais do que apenas um cidadão nacional: é judeu, católico, mulher, negro etc. Essa posição merece reparos, pois a preservação da identidade grupal, religiosa ou cultural, pode ser também, um grande desafio para as ciências sociais e para os Estados Nacionais no futuro, pois a identidade não pode prescindir da cidadania, que implica, fundamentalmente, no reconhecimento e aceitação das diferenças, convivendo-se harmonicamente com elas. Se a preservação da identidade religiosa, cultural, racial e de gênero implicar na exclusão ou na discriminação do outro, estarão lançadas as bases para o recrudescimento dos conflitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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terça-feira, 10 de junho de 2008

GLOBALIZAÇÃO E POLÍTICAS DE DIVERSIDADE NO MERCADO DE TRABALHO

Por Renato Ladeia

RESUMO:
O processo de globalização econômica, acelerado a partir do final do século XX, resultou em profundas mudanças sociais, políticas e culturais, decorrentes, principalmente, dos deslocamentos dos capitais em busca de vantagens competitivas e novos mercados. Essa mundialização da economia de mercado, incorporando novas regiões, outros povos e culturas gerou uma nova configuração social, política e econômica com o surgimento de outras identidades, novas reivindicações e conseqüentemente novos conflitos. Neste contexto multicultural torna-se necessário um ajustamento ideológico para a manutenção dos níveis crescentes de acumulação. Assim as políticas de diversidade humana nas organizações vem cumprir esse papel, ajustando as organizações para se adequarem a um ambiente global e sem fronteiras.

Palavras-chave: globalização, mercado de trabalho, diversidade.

ABSTRACT
The globalization economic process, developed on the finish of the XX century, result in the deeply social, politics e cultural changes, derived from the transferring of the capitals searching for competitive advantages and news markets. This globalization of the marketing economy, absorbing news countries, others populations and cultures, created new social, political and economics structures and consequently news ethnics conflicts. In this multicultural context, began necessary an ideological adjustment for maintenance of capital accumulation. Thus the diversity human politics in the organizations is important to adequate to global and without border environment.

Key-words: globalization, work’s market and diversity.

Renato Ladeia de Oliveira
Prof. Dr. Depto. Administração do Centro Universitário da FEI
e.mail: rladeia@uol.com.br

Introdução
Este artigo tem como objetivo analisar o vínculo existente entre o processo de globalização e o interesse crescente pela diversidade no Brasil e no mundo. A ampliação dos movimentos de identidade étnica e o afloramento do racismo em termos globais são também questões relevantes, pois podem influenciar movimentos de identidade de minorias raciais. Não é possível afirmar que os movimentos de etnicidade e o racismo sejam frutos da globalização, mas que essa nova dinâmica do capitalismo global pode, como é possível identificar exemplos através do cotidiano dos meios de comunicação, acirrar os conflitos étnicos, bem como manifestações de rejeição ao diferente. Os fatos recentes ocorridos na França, onde populações de origem africana desencadearam violentos protestos contra a discriminação não podem ser ignorados.
As razões podem ser decorrentes do simples fato de as comunidades, etnicamente diferentes, estarem em outros países que não os seus. Eles podem incomodar por se vestirem de forma diversa, pela cor da pele, pelos costumes e até pela forma como se relacionam, falam, amam, oram, comem etc. A outra razão está relacionada à possibilidade de que ocupem os seus empregos, dos seus familiares dos seus amigos ou dos semelhantes. Os semelhantes são sempre como nós mesmos e não como os outros. Finalmente, eles podem incomodar pelo fato de as pessoas se sentirem ameaçadas pelas ondas de criminalidade. Eles serão sempre culpados de todas as mazelas sociais (KOLTAI, 2000).

2. A Globalikzação e a etnicidade

A globalização introduz elementos novos no cenário social, político, econômico e cultural com a maior interação de indivíduos dos mais diversos povos e nações do planeta e por isso tem gerado impacto nos meios de comunicação, nas relações de trabalho, nas relações sociais e na política. A mudança do perfil demográfico dos países centrais demandou a importação de trabalhadores e eles não vêm sozinhos, mas acompanhados de seus costumes, crenças, religiosidade, música, alimentação, enfim, toda a bagagem cultural acumulada, que entra em choque com outros costumes e padrões dos países receptores. Provavelmente nenhuma nação do globo escapará dessa interação dinâmica com novos povos e isso implicará reconstruções de padrões de vida, do modo de olhar o outro, enfim da própria existência. Mesmo países como o Brasil, que, sob a influência da ideologia da democracia racial, mantém padrões de convivência aparentemente pacíficos entre brancos, afro-descendentes e indígenas, podem sofrer o impacto de movimentos sociais que reivindicam não somente a identidade, mas também direitos e espaço público. Esses atores, os afro-descendentes e indígenas, até hoje atuando nos bastidores, poderão estar presentes na nossa contemporaneidade, papéis mais relevantes e, se possível, como protagonistas de uma sociedade em crise de identidade. A discussão sobre as identidades é fecunda e simplesmente pelo fato de estarem presentes entre nós significa que não estão mortas e “mesmo que morem nos subterrâneos, tomam fôlego, se recriam, são ressignificadas e vivem na modernidade” (BERNARDO, 2004).

A questão da globalização ganha vários contornos, atingindo amplitudes nos debates nas ciências sociais em geral, mas é no plano econômico que apresenta o seu significado mais contundente, gerando impactos em todas as formas de organização social. A globalização, como afirmam seus críticos (BOURDIEU,1998; WALLERSTEIN, 2000; BREULLY, 2000; e outros), engendrou não apenas uma nova ordem econômica sob a égide do neoliberalismo, mas novas ideologias, como a mundialização da cultura, novas formas de organização do trabalho, a diversidade organizacional, a linguagem global, dentre outras. Entretanto, as novas formas de atuação do capitalismo global se apresentam como algozes de profunda desarticulação das unidades nacionais e, ao invés de propiciar nova configuração da sociedade humana, baseada na solidariedade, na aceitação das diferenças e no direito ao espaço público, aprofundou as desigualdades sociais e a intolerância. Como resultado temos visto a ampliação dos movimentos de identidade étnica ou etnicidade, na esteira da crise sistêmica do capitalismo global.

Entretanto, as resistências ao processo de mundialização econômica são sinais claros de seu esgotamento. Nesse imbróglio, ao lado de alguns aspectos da homogeneização, o que se observa é a fragmentação, com o fortalecimento ou mesmo o ressurgimento de movimentos étnicos, do racismo e da intolerância com o Outro. A própria versão da globalização, como uma teoria acadêmica, vem encontrando fortes resistências, abrindo-se perspectivas para o surgimento de teorias alternativas a esse modelo. A globalização se apresenta como uma construção ideológica do sistema capitalista, formulado com base na realidade que visa fundamentalmente ocultar as contradições dessa mesma realidade. A idéia, propagada pelos arautos da globalização, de homogeneização do padrão de vida existente nos países centrais ou hegemônicos para os países periféricos é uma utopia, pois sempre haverá uma hierarquia nesse sistema, o que é fundamental para a sua existência como tal (WALLERSTEIN, 2000).
Mesmo ideólogos do neoliberalismo, após a breve euforia universalizante que se seguiu ao colapso do “socialismo soviético”, já admitem que nesta “nova ordem mundial” que tanto edulcoraram não haverá lugar para todos - seres humanos e países (ALMEIDA, 1997:177). Dessa perspectiva pouco otimista sobre o futuro do capitalismo globalizado, com a falta de espaço para todos, a possibilidade de ampliação das desigualdades, da segregação e do racismo parece ser inevitável.
Assim, esse sistema tem acirrado as desigualdades e ampliado os níveis de pobreza, com o desencadeamento de crises regionais e fomentação dos movimentos de identidade étnica e do racismo através da fragmentação de estruturas sociais, reduzindo a capacidade de intervenção dos Estados Nacionais para o estabelecimento de um equilíbrio estável.

2. Do Global para o local

A globalização engendrada pelo capitalismo contemporâneo se impôs de forma quase hegemônica em todos os cantões do globo. Esse triunfo, aparentemente irreversível, com sua nova dinâmica, incorporando formas mais eficientes de organização produtiva, não determinou o esgotamento das culturas locais, que, num processo sincrético, incorporaram essa racionalidade às suas características. Como afirma Ianni:
Sem prejuízo das peculiaridades sócio-culturais de cada povo, praticamente todas as tribos, nações e nacionalidades do mundo foram alcançadas, envolvidas, impregnadas, transformadas ou recriadas pelas relações, processos e estruturas de organização da produção e da vida social mais característicos do capitalismo (1995:117).

Entretanto, a nova dinâmica do capital, quer seja denominada globalização, mundialização, capitalismo global etc, não pode prescindir de outros atributos simbólicos para se impregnar na vida social, cultural e afetiva dos povos, gerando a reboque outras construções ideológicas alinhadas ao objetivo primordial. O aspecto ideológico é que vai dar sustentação ao processo de cooptação de todos os Estados Nacionais, todas as cidades, aldeias e até nações indígenas, cujos primeiros contatos foram realizados muito recentemente. A cooptação de nações indígenas que foram integradas ao sistema, através da negociação de pagamentos para a exploração de seus territórios, pressupondo a possibilidade de aquisição de bens de consumo, armas, munições e produtos eletrônicos, é exemplo da evidência da abrangência da expansão do capital.
O capitalismo global não é uma novidade enquanto objetivo de estabelecer sua hegemonia em nível planetário, mas pode ser novidade na utilização de processos de desconstrução de tradicionais formas de proteção de economias nacionais através de barreiras alfandegárias, taxação e protecionismo, impondo a ideologia de que se trata de uma novidade positiva e inexorável e quem dela não participar estará condenado à pobreza e ao subdesenvolvimento. Dentre as construções subjacentes temos a cultura global, música global, alimentação global (macdonização do mundo), a roupa global etc. Entretanto, essa apregoada homogeneização do globo, com o fim das culturas não eurocêntricas, não se realizou no plano real e tampouco no plano simbólico. Como afirma (WARNIER, 2003, p. 151), “... o verdadeiro problema ao qual as sociedades contemporâneas confrontam-se é a fragmentação e dispersão das referências culturais mais do que de homogeneização das diferenças “.
O capitalismo industrial, na fase voltada para a produção em grande escala, utilizando a especialização extrema do trabalho para introduzir rapidamente grandes hordas de trabalhadores que abandonavam o campo em direção às cidades – a saída possível, considerando o estágio tecnológico da época, para atender a grande demanda consumista – produzia em grande escala e de forma padronizada. A famosa frase de Henri Ford que dizia que qualquer um poderá comprar um carro, desde que seja um Ford T preto, é reflexo desse contexto. Na medida em que a competição se torna mais acirrada, a indústria se volta para produtos personalizados para cada nicho de mercado, restabelecendo-se a individualidade do consumidor. Seria errôneo afirmar que foi a globalização que impôs a produção segmentada, com produtos diferenciados, resultando em novas formas de organização produtiva, mas a própria dinâmica do modo de produção capitalista, ancorada pelo individualismo latente das sociedades ocidentais. Na realidade, a humanidade, hoje, como no passado, continua a ser uma máquina de fabricar diferenças, clivagens, particularidades, distinção de clãs, formas de falar, residências, classes, países, frações políticas, regiões, ideologias, religiões. Essas clivagens perpetuam culturas existentes transmitidas pelas tradições localizadas, socializadas, verbalizadas, identificadoras e que preenchem a função de bússolas individuais e coletivas (WARNIER, 2003: 166).
Evidentemente, o mercado globaliza os fluxos de objetos e de condutas. Mas, no mesmo movimento, ele abastece as sociedades de bens infinitamente diversificados, que servem para fabricar a diferença e a identidade (WARNIER, 2003: 166). Nesse sentido, a globalização, ou capitalismo global, atua no sentido de proporcionar o acesso aos produtos diferenciados, desejados por todos. Da mesma forma que os colonizadores faziam com os indígenas, oferecendo miçangas, espelhos, pentes e outros adereços para obter cooperação para explorar madeiras, ouro e pedras preciosas, isso, também está ocorrendo agora. Na contemporaneidade, o comércio global oferece outras possibilidades, repletas de novidades tecnológicas como relógios, jogos eletrônicos etc, mas em troca de dinheiro.
O capitalismo global, em sua nova dinâmica, cria, assim, novas configurações, desarticulando tradicionais sistemas produtivos e incorporando novas formas e tecnologias de gestão, ocupando novos espaços. O enfraquecimento das fronteiras (entre sociedades e categorias sociais), reproduz no interior das sociedades, desigualdades e discrepâncias antes associadas às diferenças coloniais, homogeneização e fragmentação simultâneas nas sociedades e, além delas, interpenetração do global e do local e desorganização de um mundo concebido em termos de três mundos (desenvolvidos, socialistas e subdesenvolvidos ou em desenvolvimento) ou de Estados Nacionais (DIRLIK, 1997: 27).
Para Dirlik (1997:27) há o reconhecimento de que as organizações do capitalismo global dispõem agora de poder para apropriar o local para o global, para admitir culturas diferentes na esfera do capital, ajustando-as para atender as exigências da produção e consumo. A tendência dessas organizações de se adaptarem às diferenças, implementando políticas de diversidade racial e étnica em todas as suas filiais é um exemplo disso, tentando, dessa forma, neutralizar os conflitos. Ao mesmo tempo em que a globalização desarticula, fragmenta, ela também cria novas possibilidades de identidades locais, como um processo de resistência à padronização planetária. Pode-se dizer que o local e o global estão distantes e próximos, diversos e iguais; as identidades embaralham-se, multiplicam-se; as articulações e as velocidades desterritorializam-se e reterritorializam-se em outros espaços, com outros significados (IANNI, 1998).
Essa nova proximidade, ao mesmo tempo em que distancia, gera uma imprecisão de sentidos, de percepções, de identidades, podendo criar um leque maior de desintegração e integração. Ao mesmo tempo em que há uma tendência em direção à homogeneização global, há também uma fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia e da “alteridade”. A mercantilização global envolve não somente mercadorias, mas também crenças, valores, diferenças e identidades. Assim, o global não substitui o local, mas provoca nova articulação entre essas duas categorias, podendo construir novas identificações globais e novas identificações locais (HALL, 2004).
Enfim, a internacionalização do capital em sua fase mais dinâmica afeta a todos nós, pois as decisões tomadas nos órgãos internacionais, como FMI, OMC, G7 e outras instâncias, além das que ocorrem nas grandes corporações multinacionais e transnacionais, têm impactos no cotidiano das mais recônditas aldeias do globo (ALMEIDA, 1997), não importando se estão ou não cooptadas no sentido mais amplo do seu arcabouço ideológico.
A conexão entre o local e o global não depende mais das formas tradicionais e reais de comunicação, pois entra em cena a forma virtual em que o local é o global e vice-versa.

3. Conflitos sociais e étnicos

Essas novas identificações globais e locais, num contexto econômico e social que amplia a desigualdade e a segregação, são portas abertas para a ampliação dos conflitos étnicos e raciais, pois, apesar de manter alguns aspectos da dominação global ocidental, as identidades culturais estão presentes em toda parte (HALL, 2004). A tentativa de padronização e homogeneização encontra cada vez mais resistências, pois diante da impossibilidade da inclusão e da igualdade, as reações sociopolíticas negativas estão cada vez mais presentes, mostrando o ressurgimento de intolerâncias e choques culturais (IRACHETA, 2005). Os movimentos sociais e étnicos que buscam resgatar a sua identidade, vêm ganhando força, com participação cada vez maior dessas populações que desejam desenvolver o seu papel histórico na sociedade. Como a igualdade continua distante, é possível que tenhamos confrontos, pois as populações marginalizadas não são minorias, mas parte significativa da população mundial. O olhar dos excluídos não é o mesmo de um passado ainda recente. É um olhar influenciado pelos movimentos globais, pelo acesso diário às informações. As barreiras para o acesso aos empregos ou à mobilidade, bem como a discriminação dentro das organizações, começam a ser percebidas de forma mais nítida e podem ser a porta de entrada para a eclosão de conflitos sociais mais graves.
Em relação ao mercado de trabalho, nessa nova realidade, observa-se forte tendência para o favorecimento do trabalhador mais qualificado, em detrimento do trabalhador de baixa qualificação ou semiqualificado nos países periféricos, pois os processos de flexibilização e multifuncionalização da força-de-trabalho, improdutiva ou produtiva, exigem trabalhadores facilmente adaptáveis a essa nova dinâmica . Entretanto, mesmo o trabalhador mais qualificado acaba ficando à margem do mercado de trabalho, pois o processo de “exportação” de empregos para outros países, em decorrência da busca constante de vantagens competitivas tem crescido de forma assustadora. Outro aspecto relevante nesse processo é a tendência à exclusão ampliada de populações marginalizadas, pois nos momentos em que ocorre uma forte queda na oferta de empregos, a discriminação dos desiguais tende a se ampliar.
Num ambiente com elevado nível de desemprego, é bem provável que os trabalhadores que pertencem às minorias étnicas ou discriminadas, como os negros e indígenas pagarão a maior parte da fatura no processo de expansão do capitalismo global, que gera crescimento em uma ponta e desemprego e desigualdades ampliadas em outra, tanto nos países periféricos como nos desenvolvidos . Os países que recebem esses novos empregos, retirando trabalhadores que viviam à margem do mercado de trabalho, podem contar vantagem por pouco tempo, pois nada garante a permanência indefinida dos capitais que, ávidos por ampliações contínuas das margens de acumulação, buscarão novos campos de pouso, principalmente aqueles que, iludidos pelo canto da sereia, abrem suas guardas para receber um novo cavalo de Tróia.
Para o Banco Mundial (1995), os fluxos de capitais geram percepções pessimistas dos dois lados. Para os países ricos, a possibilidade de aliança entre capital e trabalho barato nos países periféricos podem provocar uma queda dos salários e padrão de vida em seus países. Por seu turno, nos países pobres, há o receio da exploração no sentido de que os capitais somente viriam quando os salários estivessem baixos e se retirariam quando aumentassem. De qualquer forma, na combinação cruel entre salários baixos e escassa oferta de empregos, a corda deve arrebentar no lado mais frágil, que é o da população negra e mestiça, no caso brasileiro. Como os dados estatísticos vêm comprovando, a renda média da população afro-descendente é mais de duas vezes menor do que a da população branca .

Um processo fundamental, associado à globalização, tem sido a aceleração da urbanização e da mobilidade física de pessoas em todo o mundo, desde a segunda metade do século passado, criando novos cenários para uma maior pluralidade étnica e cultural das cidades. Esses cenários são conseqüência das desigualdades geradas pela economia mundial e de algumas conseqüências como a aceleração das migrações dos países do hemisfério sul para o norte, com destino às principais metrópoles. (IRACHETA, 2005). Tais movimentos ocorrem também no nível interno dos Estados Nacionais, principalmente em países como o Brasil, Índia e China, de grande extensão territorial, em que se observa movimentação crescente em direção às grandes metrópoles, ampliando a concentração da pobreza nesses locais pela incapacidade que o setor público tem em atender as demandas de moradias, saúde, segurança, educação e empregos. Essas movimentações populacionais ampliam a rejeição ao Outro, que aparece também como um perigo para a estabilidade das comunidades que se vêem ameaçadas pelos diferentes. Em alguns casos, mesmo aquele que é da mesma origem ou da mesma etnia pode ser visto como uma ameaça, pois, para aqueles que chegaram primeiro e superaram as dificuldades de assimilação, ele pode representar uma ameaça à estabilidade obtida.
A presença em massa de estrangeiros nos países centrais revela suas contradições enquanto força de trabalho necessária para as necessidades do sistema produtivo. De um lado o mercado necessita de mão-de-obra, preferencialmente barata, para atender às demandas da indústria e serviços, situação decorrente das baixas taxas de natalidade desses países, que não conseguem manter os níveis de reposição demográfica. De outro, há resistência constante desses países em estender a todos os migrantes a cidadania, na forma de direitos sociais. Essa população que participa do sistema econômico, gerando riqueza e acumulação, não aceita permanecer à margem, segregada, em uma sociedade opulenta. Assim, passa a resistir, expondo suas identidades diante da impossibilidade de serem integradas e incluídas ou apelando para a violência social, como o exemplo da revolta dos jovens franceses descendentes de imigrantes árabes e africanos.
Enfim é preciso ter em mente que todos vivemos em sociedades multiétnicas, que se distanciam mais e mais da idéia que se fazia dos Estados Nacionais, baseados em populações mais ou menos homogêneas em termos étnicos.
Corroborando essa afirmação, dados do Banco Mundial (1995) estimavam que cerca de 125 milhões de pessoas viviam fora de seus países de origem, procedendo cada vez mais de países pobres em direção aos países mais ricos. Esse número é sempre crescente e gera a perspectiva de que os conflitos étnicos podem ser multiplicados ao longo dos anos.
Anderson (2000) considera que a chegada dessas populações, representa enorme desafio para os Estados Nacionais, pois pode representar uma ameaça à auto-imagem das populações tradicionais. Os estrangeiros são normalmente diferentes, com variadas cores de pele, diversas línguas, hábitos, comportamentos, muitas vezes bastante diferentes dos padrões conhecidos pelas populações locais. Em alguns casos, para evitar problemas de rejeição, tenta-se restringir a entrada de imigrantes aos descendentes que imigraram para outros países, como foi o caso do Japão. Entretanto, os imigrantes brasileiros de origem japonesa que ingressaram no país como “decasséguis”, apesar da aparência, são culturalmente brasileiros, muito diferentes dos padrões locais, o que não evitou a discriminação e as dificuldades de integração. “Se no Brasil são pensados como japoneses, no Japão não passarão de gaijin” (WOORTMANN,1995).
Outra questão que deve ser colocada ante a discussão sobre etnicidade, conflitos étnicos, discriminação etc. é a cidadania. Vieira (2001) lembra que nas sociedades multiculturais a cidadania é uma dimensão política diferente da base étnico-cultural dos Estados Nacionais. O Estado é o lugar de todos os cidadãos, mas a pessoa humana é mais do que apenas um cidadão nacional: é judeu, católico, mulher, negro etc. Como afirma Arendt (2001) a existência de um mundo comum, compartilhado, onde se expressam as divergências, é uma construção, um artefato humano que depende dessa forma específica de sociabilidade que só o espaço público pode instituir (ARENDT, 2001). O mundo comum é regido pela pluralidade humana, da qual depende a existência da própria realidade. A preservação da identidade grupal, religiosa ou cultural, pode ser também um grande desafio para as ciências sociais e para os Estados Nacionais no futuro, pois a identidade não pode prescindir da cidadania que implica, fundamentalmente, o reconhecimento e a aceitação das diferenças, convivendo-se com elas e aceitando-se os conflitos inerentes. Se a preservação da identidade religiosa, cultural, racial e de gênero acarretar a exclusão ou a discriminação do outro, estarão lançadas as bases para o recrudescimento dos conflitos.
As organizações em nível global, da perspectiva da racionalidade inerente aos seus objetivos de acumulação e crescimento do capital, buscam adaptar-se rapidamente a essa nova realidade, assumindo o controle da situação. No passado os agentes do multiculturalismo poderiam ter sido radicais marxistas ou feministas, mas atualmente a iniciativa passou para as mãos de administradores bastante conscientes das necessidades de recursos humanos adequados para a nova situação econômica (DIRLIK, 1997).
Para manterem-se competitivas no mercado mundial, as corporações foram buscar formas adequadas de entrada em novos mercados, adaptando-se aos padrões culturais de cada unidade nacional capitalista. Para tanto, os estudos de mercado não abrangem apenas os aspectos econômicos, como PIB, renda, população, estrutura competitiva, mas também estudos sobre a cultura local, envolvendo sistemas de crenças, valores, hábitos alimentares, religiosidade, costumes, festividades etc. No meio acadêmico voltado para a gestão de negócios, um tema emergente é a diversidade humana nas organizações, que visa a adaptação das empresas às condições locais, para que ajam preventivamente e evitem conflitos com costumes e tradições de onde as corporações são instaladas. Dessa forma, “... a compreensão da cultura da sociedade pode contribuir para esclarecer o comportamento e as práticas gerenciais locais” (RODRIGUES E DUARTE, 1999:44). Assim, as políticas afirmativas adotadas pelas corporações podem ser definidas como construções ideológicas para camuflar os objetivos estratégicos para maximizar a acumulação em âmbito global. Dentro da lógica da racionalidade do capital, a contratação e o treinamento dos funcionários que atuam como expatriados deve levar em consideração o incentivo para que abandonem posturas etnocêntricas, não somente com base em um treinamento, mas também no processo seletivo que tem como base a sensibilidade dos executivos para com os diferentes grupos componentes de sua própria cultura (RODRIGUES E DUARTE, 1999).
Pode-se afirmar que “na era da globalização, duas forças aparentemente conflitantes estão presentes no trabalho – a visão e pensamento global versus perspectiva local e integração global versus diferenciação local” (KILIMNIK, 1999). Portanto, a cultura, no seu sentido antropológico, reveste-se de substancial importância para as estratégias organizacionais, envolvendo desde o investimento até a definição do mix de marketing, pois permite identificar a influência que valores e crenças locais exercem na determinação do comportamento do consumidor (REZENDE, 1999).


Conclusão

A globalização ou mundialização do capitalismo se apresenta no contexto das relações sociais, políticas e econômicas um quadro de perplexidades sobre o futuro das relações entre Estados Nacionais entre etnias, sociedades, raças, culturas, corporações, gerando novas possibilidades entre o global e o local.
Esse é um tema que vem chamando a atenção de teóricos organizacionais pela sua importância em razão do processo de mundialização das economias e, por conseqüência, das empresas, engendrando ampla circulação de pessoas e organizações por todo o planeta.