O “DE PALLIO” E A ROMANIDADE DE TERTULIANO (*)
Renato Ladeia
A tese de doutoramento em História Social, defendida no departamento de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em 1976, por Flávio Vieira de Souza refere-se a uma tradução crítica do opúsculo Do Pallio de Quintus Septimus Tertulianus Florens, autor cristão latino, nascido em Cartago, na África do Norte, que viveu em fins do século II e início do século III D.C. Na tese, o seu autor, precede a tradução com a apresentação da vida e obra do autor visando a sua contextualização histórica. A tradução foi baseada na edição de A.Gerlo . O trabalho é enriquecido com comentários clássicos, especialmente de Claude de Saumaise. A tradução alemã de H. Kellner, da Bibliothek der Kirchenväter, Munique, 1912, também serviu de apoio.
A tese, apesar da existência de um outro trabalho de livre-docência na cadeira de Língua e Literatura Latina da FFCL da USP, do prof. Dante Tringali se caracteriza pelo ineditismo no idioma português ao abordar o tema de forma diferenciada, com uma oportuna abordagem histórica. Não há, conforme as palavras do autor, uma excessiva precisão lingüística e estilística, o que dá ao trabalho de tradução um estilo mais leve, mais fluido, sem a aspereza do original em latim.
A tese, além da tradução crítica do texto de Tertuliano, descreve o momento histórico do escritor, bem como a sua formação cultural e intelectual dentro do espírito romano e a influência africana na defesa do cristianismo.
O primeiro capítulo da tese, reproduzido nas páginas seguintes deste caderno, é dedicada a Tertuliano, sua vida e sua obra, apresenta uma série de notas explicativas referenciadas por obras clássicas o que é indicativo da elevada cultura erudita do autor da tese. O segundo capítulo, Época de Tertuliano, “... coincide com um momento importante da História de Roma: início do que se convencionou chamar a crise do III século, época de profunda transformação, que prepara os novos caminhos de Diocleciano e Constantino e que tem suas primeiras raízes no tempo de Marco Aurélio” (p. 29). O capítulo III, Tertuliano, o Autor Do De Pallio, destaca-se pelos elogios ao estilo do escritor cristão e sua vasta erudição, pois escreveu também em grego, muito embora suas obras no idioma de Aristóteles não tenham chegado até nós. Por estas e outras razões, Tertuliano, é considerado por Harnack como o verdadeiro criador do latim eclesiástico.
No capítulo IV, O De Pallio, encontram-se as referências sobre a obra traduzida e analisada, bem com o propósito da tese: “A atermo-nos ao conteúdo deste opúsculo, trata-se de uma defesa. Tertuliano justifica-se diante de seus concidadãos por um usar o pálio em lugar da toga. É uma obra cheia de vivacidade, originalidade e ironia, e repleta de referências à cultura literária da época” (p. 48). No capítulo V, de Pallio e o Império Romano, é descrito como a obra foi vista pela maioria dos críticos que a via como uma das habituais objurações de Tertuliano contra os pagãos romanos, simbolizados pelo Império. O pálio, símbolo da simplicidade e da moralidade, opõe-se à toga, veste nacional dos romanos, aqui equiparada à decadência moral.
O Prof. Flavio Vieira de Souza conclui que, embora o estilo não fique muito longe das demais obras de Tertuliano, a temática da obra decepciona aqueles que se habituaram a ver nele um escritor sisudo. Ao fazer a defesa de uma vestimenta diferente, uma crítica aos costumes da época, o escritor mostra-se um cronista mordaz e severo da sociedade pagã (p. 139 e 140).
Enfim, apesar da tese sugerir um interesse mais restrito aos historiadores especializados em temas da antiguidade clássica, vale a pena a sua leitura pela riqueza de detalhes sobre o momento histórico nos primeiros séculos do cristianismo. O texto de Tertuliano, pela riqueza de detalhes sobre a cultura e valores da época e pelo método de exposição e defesa do tema, mostra-nos os profundos conhecimentos do escritor sobre o seu tempo. Além disso, é sobejamente curioso entender como uma questão aparentemente sem relevância como o uso de uma indumentária podia suscitar tanta polêmica. A crítica de Tertuliano tem um caráter moralista e o texto elegante do tradutor nos permite perceber a ironia do escritor ao comentar os hábitos de vestimentas reinantes e suas mudanças, quando afirma: “Portanto tais pessoas que mudam os trajes naturais e decentes merecem que o povo as fixe com olhar severo e as aponte com o dedo balançando a cabeça” (pg.81).
Apesar de a temática ser aparentemente árida para os não habituados aos temas clássicos, a tese permite uma excelente oportunidade de um contato com o cotidiano do Império Romano nos primeiros séculos da era cristã. Isso através de um texto bem escrito e ao mesmo tempo fluido e entremeado de bom humor, condição que faz justiça ao nosso saudoso tradutor.
segunda-feira, 16 de junho de 2008
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